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Quarta-feira, 5/12/2001
O elogio do Silêncio ou duas ou mais antipolêmicas
Paulo Polzonoff Jr

Daniela Mountian

Mesma rotina de sempre: abaixar a música (hoje uma mistura de Sinatra, Ella Fitzgerald e Chico Buarque), ligar o computador, esperar meia hora para ele “pegar no tranco”, clicar no ícone do Word e ver aquela imensa tela branca que pede para ser preenchida não por tintas, mas por caracteres pretos, geometricamente perfeitos demais — a expressão material de minhas sinapses. Não, ao contrário do que podem pensar meus dois leitores habituais, não faço este nariz-de-cera todo porque não tenho o que escrever. Tenho tantos assuntos que não sei por onde começar e vou tentar abocanhar a todos num texto só. Vejamos no que vai dar, se o Chefe vai aprovar (preocupação constante...), se os feedbacks serão satisfatórios, se a vaidade se sentirá saciada, se o sono será bom depois do amor, se ainda haverá noite depois do ponto-final.

Hoje alguma coisa vai ser diferente, eu sei. Aumentei o Sinatra (In The Wee Small Hours Of The Morning), que escutei com especial atenção, pensando na voz acanhada mas não menos apaixonante de D.. O Sinatra vai continuar a tocar um pouco mais, depois passarei por Ella cantando Porter, como de costume, e substituirei o Chico Buarque das tardes tristes por Clara Nunes cantando Iracema, de Adoniran Barbosa. Confesso que, apesar de reconhecer toda a beleza de Cartola, Noel Rosa e quetais, Iracema é a música que gostaria de ter composto. Jamais ouvi canção mais piegas e... bela. E não adianta vir com lição de moral, que às vezes (muitas vezes, aliás), pieguice faz um bem danado.

Hoje eu queria criar uma polêmica. É que li uma expressão que me deixou cabreiro esta semana: “polêmica fácil e infantil”. Ou “polêmica infantil e fácil”. A mudança entre os adjetivos faz toda a diferença. Uma polêmica fácil, por exemplo, é discutir a descriminalização da maconha. Fácil não porque seus argumentos sejam banais, mas porque todos têm alguma opinião sobre o assunto, que causa interesse imediato até mesmo naquele cara lá no fundo do bar, contemplando as pinceladas de um Pollock. Já uma polêmica infantil me agrada mais: é discutir o sexo dos anjos, a transformação das horríveis lagartas em borboletas, olhar para uma poça dīágua e ver nela um espelho que conduz a uma céu-para-baixo.

No Brasil, tivemos grandes falsos polemistas, como Sílvio Romero, Chatô, Carlos Lacerda, Paulo Francis e agora Diogo Mainardi. Digo falsos polemistas porque Paulo Francis, por exemplo, não era um homem preocupado em causar grande furor com suas idéias. Expunha-as; se os leitores, ignaros em sua maioria, levavam as opiniões de Francis como ofensa e, por conseguinte, como polêmica, isso é outra história. Engraçado mesmo é ler Diogo Mainardi hoje em dia. Ainda mais na (arght!) Veja. Faz tempo que não leio uma coluna dele inteira. Leio o “olho” apenas, e rio, porque, para mim, que vivo de escrever, fica patente que o “polemista” está tentando irritar o leitor assim como uma criança sobe na goiabeira do vizinho para roubar a propriedade alheia. Ou como o menino espia a vizinha impúbere a trocar de roupa, no afã de seus hormônios que o transformam, aos poucos, num homem — e possivelmente canalha, me alerta uma amiga.

Minha polêmica neste texto reside no fato de eu ser um obsessivo pelo Silêncio. Trabalho com palavras e, como crítico cultural, com opiniões diariamente. Sou, contudo, um obsessivo pelo Silêncio. Tenho vários textos escritos sobre isso: sobre o prazer de ficar quieto numa mesa de bar, durante um telefonema, admirando as palavras alheias, mesmo que elas só digam bobagem, o que é muito provável. Aqui, infelizmente não posso (será que eu quero realmente?) ficar quieto.

Para vocês meus dois leitores habituais (ah, esta falsa modéstia....), portanto, peço, só hoje, não um, mas vários minutos do mais azul dos silêncios.

Uma historieta do Silêncio (primeira antipolêmica, à moda de Swift)

Ora, ora. Pensou o Idiota, no Princípio, que a Redenção se dava por meio da Palavra. Nada mais ingênuo e inocente e digno da mais sincera Compaixão, a mesma que se sente pelos leprosos em andrajos e cornetinhas a andar pelas ruelas das pequenas cidades anunciando sua danação. Pensou o Imbecil que, escrevendo, renasceria eternamente, pelo Poder da Palavra Escrita, pelo Poder de suas idéias materializadas em tipografia indestrutível. E, assim, por esta Corda feita de penas e tintas e canetas e teclados e bytes de computador, enforcou-se o Homem, compreendendo, no Átimo que antecede a Morte, que a única forma de Inteligência se encontra no Silêncio.

Deveria ter descoberto antes, muito antes, claro, mas se analisarmos a vida do Imbecil perceberemos que sua culpa é mínima. Um belo dia os Neurônios tiveram um achaque e inundaram o Cérebro do Pobre-diabo de ondas elétrica que causaram um efeito devastador, mudando toda a Harmonia vigente naquele órgão, tempestade esta que foi a responsável por ele ter pensado um Pensamento tão rápido que não se tem analogia em sua pequenina compreensão do tempo. Pensava o Pensamento que, se escrevesse, estaria ligado aos seus. Voltando um pouco no Tempo, veremos que o Mundo é cheio de Imbecis mais ou menos ilustres como ele, que tiveram seus Sistemas Nervosos igualmente afetados por esta estranha e - graças a Deus - cada vez menos comum Doença. A tradição de se ser Idiota pela pena começa com os fenícios (ou um pouco antes; que se danem os historiadores de plantão), passa pelos gregos (devastando Cidades-estado), mas ganha maior repercussão quando do surgimento da Bíblia e do mito da Criação. Adão e Eva foram os primeiros Imbecis que reinaram sobre a Terra, eles próprios personagens de um Imbecil-mor que os criou antes de compreender que o Silêncio, este sim é o derradeiro Paraíso. Ainda hoje se fala que o sexo foi o pecado de Adão e Eva. Não foi; ousaram os dois seres mitológicos a descobrirem os segredos de Deus, e para tanto fizeram uso de um fruto proibido, que não era uma maçã, e sim uma simples vara com a qual feriram a areia escrevendo uma frase qualquer. Depois disso, fizeram amor. Esta é outra história.

Dentre os modernos, Goethe, o poeta alemão, foi o que melhor compreendeu toda a Loucura que é escrever. Para tanto escreveu o belo poema em que o Homem, sedento de Imortalidade, vende sua alma ao Diabo, ou seja, escreve. Ao inferno Fausto foi levado, independentemente da posteridade a ele relegada. No Silêncio, Fausto não estaria sentindo até hoje as chamas do seu Martírio. Tanto só para dizer que é o Silêncio que redime.

Felizes são os mudos, cujos pensamentos estão para sempre encarcerados numa não-verbalidade divina.

No Princípio, senhores exegetas do Sofrimento Humano, era a Palavra. Era o Verbo. E o Verbo se fez solto pela Terra e gerou o Caos. E o Caos perpetuou-se por longos séculos até a vinda do Messias que, sabiamente, não deixou obra escrita, senão pelos seus Apóstolos. Jesus seria a Completude do Ser se seu Silêncio diante da Morte fosse o único discurso jamais escutado pela Humanidade. Acredito, aliás, que o Sermão da Montanha foi um momento de extremo Silêncio, no qual o homem convergiu com tudo o que o rodeava, sem tentar tirar disso uma só letra transmissível às gerações futuras. Jesus foi a tentativa do Silêncio - e o verdadeiro pecado do homem não foi tê-lo crucificado, e sim ter escrito palavras que certamente Ele não disse.

Porque é no não-dizer que reside a divindade do Cristo.

Gosto de João e acredito que João, depois de também escrever seu Evangelho, compreendeu. Na Fúria Alucinógena de sua compreensão, mesmo errando mais uma vez, deixou à Posteridade o Libelo do Silêncio, por muitos conhecido como Apocalipse. É no Silêncio que residirão os bons; aos ímpios, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras, palavras...

Curso de Silêncio para escrevinhadores (antipolêmica sobretudo fácil, mas também infantil)

Mais do que saber escrever, seria necessário que se fizesse frutificar escrevinhadores (poetas, escritores, filósofos, jornalistas,...) o conhecimento do não-escrever. Interromper a frase à meia-palavra e por ali terminá-la, certos de que o complemento seria inoportuno. Refrear o impulso do aposto a mais. Dizer não ao adjunto que se sobrepõe à informação contida na frase. Tudo isso não para se adequar a normas de manuais ou para não recair no remorso da ética assassinada (no caso específico de jornalistas), tampouco para não ousar a autoridade bestial da nossa infeliz democracia. Simplesmente para poupar ao escrevinhador o infortúnio da incompreensão. O senso de desperdício de idéias é vital para quem quer viver das palavras.

Em Hamlet (alguém já leu? Brincadeirinha...), Polônio aconselha a seu filho, Laertes, que está de viagem à França, que escute mais do que fale, pois assim age o homem prudente. Tal sabedoria não está só em Shakespeare. Do Tao Te King, passando pelos filósofos gregos, atravessando a Bíblia e por fim chegando aos romances modernos e ate aos livros de auto-ajuda, é dada como verdade universal que o sábio é aquele que mais ouve do que fala. Como ficam, porém, estes escrevinhadores (nós, em última análise; eu, em primeira análise), já que somos heréticos por natureza deste dogma? Sim, pois o que é essa volúpia de se querer ser lido, se não uma versão moderna da verborragia que levou Sócrates à pena capital?

Dá-me um cálice de cicuta, garçom!

Falamos em demasia. Escrevemos em demasia. Temos opiniões (alguns, claro) em demasia, e não raro as divulgamos sem nos darmos conta do teor blasfemo das palavras. Os ouvidos alheios são sensibilíssimos a ofensas jamais pensadas e a quase-proto-semi-antiverdades que por alguma razão contrariam o interlocutor. O discurso dos escrevinhadores soa como lascívia a ouvidos santos. A palavra — e este sentimento ancestral de imortalidade que ela emana — é a causa desta loucura chamada literatura (e, num patamar mais baixo, imprensa), que nos faz recusar a sabedoria milenar do Silêncio. A palavra é, por assim dizer, nosso atestado de insanidade. Somos o herege que até a fogueira grita a inexistência de Deus.

Elogio do bocejo (a viabilidade do Silêncio — e mais uma antipolêmica?)

Tudo, absolutamente tudo o que pensamos, poderia ser resumido num longo e paciente bocejo. Bocejo este que só esporadicamente nos acometeria, a fim de interromper a autoritária densidade do Silêncio. Que inteligente editorial não seria aquele que, após a renúncia de um presidente, reservasse apenas o branco do papel à opinião do jornal. Que excelente matéria não seria a do repórter que, ao pé da criança violentada e estrangulada, reproduzisse na crônica policial apenas o vácuo de sua impotência. Que perspicácia a do cronista que, tendo exaurido a fonte de sua indignação política, reservasse aos discursos públicos todas as laudas necessárias em um branco que de tão alvo reproduzisse no leitor o exato sentimento de exaustão a que chegou aquela mente tão acostumada às exaltações da democracia. Que atitude perfeita não seria a da repórter que, ao ouvir os tambores da revolução que se aproxima, calasse-se em frente à câmera, e a passos lentos ligasse o refletor de modo que a luz preenchesse o lugar da batalha. Que manchete histórica não seria aquela que, anunciando o fim da guerra, ou a cura do câncer, ou ainda a erradicação da pobreza, reservasse-se o direito de calar-se, estampando em primeira página, corpo cento e setenta e cor branca, toda a exuberância de nossa questionável inteligência.

Em todas as atitudes acima citadas a Humanidade (abominável abstração) não correria o risco sempre iminente de ser acusada de falar o que não devia, ou de falar o que devia (e queria) de um modo que ofendesse uns aos outros (lembre-se: lascívia em ouvidos santos). O Silêncio, esta sim a mídia democrática, porque dá vazão a todo tipo de leitura, condizente com cada tipo de leitor, pobre ou rico, de direita e de esquerda, analfabeto ou não.

É bem verdade que há a possibilidade de pessoas, como direi, pouco instruídas, aproveitarem-se do triunfo desta nova forma de expressão, a fim de passarem-se por verdadeiros arautos da inteligência. Afinal, não há diferença aparente entre um burro e um gênio calados.

(Exceto, talvez, pelo ar sempre contemplador que irremediavelmente denunciaria aquele que sabe).

Daniela Mountian


Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 5/12/2001

 

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