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Segunda-feira, 26/7/2010
Duas escritoras contemporâneas
Ricardo de Mattos


Tatiana Salem Levy

"As pessoas vão ficando velhas e, com medo da morte, passam aos outros aquilo que deveriam ter feito mas, por motivos diversos, não fizeram" (Tatiana Salem Levy).

Um dos ensaios de Montaigne baseia-se em narrativa de Heródoto, cujo teor aconselha-nos a não declarar alguém feliz ou infeliz senão após o término de sua vida, visto que o julgamento pode ser alterado por um fato repentino e final. Embora discordemos que em sede biográfica uma ocorrência isolada possa comprometer o conjunto, reconhecemos a importância deste princípio para a Literatura. Devemos pronunciar-nos a respeito de um texto somente após leitura integral e cuidadosa. Perdoe-nos o leitor por constatar o óbvio, mas fazemo-lo como forma de penitência em relação aos livros de duas escritoras brasileiras contemporâneas: Tatiana Salem Levy e Nina Lemos.

A escritora e tradutora Tatiana Levy é autora do romance A chave de casa. A jornalista, blogueira e escritora Nina Lemos assina A ditadura da moda. Quanto ao primeiro, começamos a ficar enfastiados com a leitura, até o toque final revelar-nos o engenho da obra e cativar-nos. Quando recebemos um exemplar do segundo, lemos as orelhas e não sentimos grande motivação sequer para abri-lo. Contudo, identificado o ponto comum entre as obras, apostamos na leitura conjunta e deparamo-nos com seu valor.

A chave de casa ganhou em 2008 os prêmios São Paulo de Literatura e Jabuti. O título refere-se ao costume de antigos judeus que, expulsos de um lugar, levavam consigo a chave da casa e transmitiam-na de geração a geração na esperança de que um familiar voltasse a ela e retomasse a posse. É composto por duas palavras que merecem atenção pelo que simbolizam. "Casa" representa não somente o imóvel, mas contém um significado familiar e até dinástico outrora mais empregado: Casa de Bragança. "Chave" é o que permite decifrar, o que facilita compreender um assunto.

Desta feita, resgatando o passado, compreendendo seus familiares, entendendo-lhes a jornada, e acertando as contas, a narradora pode distinguir o que lhe era próprio do que era atávico e alcançar sua própria libertação pessoal. Embora seja relativamente discreta a afirmação desta atitude, sua execução consciente ou não é a base do texto. Notamos também a presença do círculo, do alfa e ômega, mas o leitor precisará correr as 206 páginas do romance para apreciar o efeito. Deveras, o estado psico-espiritual da narradora determina a opção pelo circular em detrimento do linear, e explica a estrutura fragmentada, praticamente cubista, do romance. Tentar adivinhar a partir do começo é arriscar-se em vão. Ler o final do livro para saciar a curiosidade é tarefa ociosa. O conhecimento do todo permitirá encontrar o talento onde parecia haver apenas uma sucessão indefinida de lamúrias.


Nina Lemos

Quatro os temas principais do romance: a viagem da narradora à Turquia (!), seu relacionamento com a mãe, a história do avô materno e o relacionamento doentio com um homem, que dos conflitos gratuitos degenera em sadismo. No meio caminho entre o autobiográfico e o ficcional, Tatiana Levy improvisa uma solução classificando a obra como autoficção: "Conto (crio) essa história ...". Trate-se da própria autora, ou de personagem, ou de "eu-lírico", chamemo-la simplesmente "narradora" a voz presente.

As referências autobiográficas podem ser traiçoeiras. Até que ponto uma vida é interessante o suficiente para servir à Literatura? "O 'eu' é uma comodidade gramatical, filosófica e psicológica", avaliou a escritora Marguerite Yourcenar, talvez porque falando de si, o escritor como que dispensa a investigação do que lhe é externo e privilegia o subjetivo, diminuindo os riscos da escrita e as chances de confronto. "O 'eu' é odioso", decretou Pascal. "O 'eu' é odioso, mas trata-se do eu dos demais", contraditou Valéry. "O 'eu' é odioso, dizeis. Não o meu", concluiu Gide a secular discussão francesa.

O ponto comum entre os dois livros são as referências à ditadura militar brasileira. Tatiana Levy e Nina Lemos descendem daquela parcela da geração anterior que se envolveu com a resistência. Sim, discorremos sobre livros escritos por pessoas com idade próxima a nossa, quiçá mais moças. O que muda é a abordagem individual. A narradora d'A chave de casa parece buscar na mãe a inspiração para a luta pela sobrevivência. No diálogo mantido com a mãe já desencarnada, esta "corrige" o texto da filha, atenuando-lha opção pelo doloroso. A confusão mental da personagem de Nina Lemos não a impede de descobrir que não gosta de ver malbaratados os valores defendidos por indivíduos que ainda são-lhe próximos e privam de seu afeto. Além disso, há coisas que, embora não sejam o foco de uma existência, acabam compondo históricos individuais e direcionamo-lhes o respeito e a consideração que tínhamos - ou temos - pelas pessoas a quem essas coisas eram caras.

O Ditadura da moda é ambíguo. Pode ser o despotismo estabelecido pela Moda, este ridículo sem objeção ou epidemia induzida, como sugeriram respectivamente Balzac e Shaw. Pode ser também a tirania do momento, da ocasião: no Brasil, a ditadura da moda é da Ignorância. Entre as piores consequências do regime ditatorial, seja ele qual for, está o descrédito em que lança o indivíduo quanto a sua capacidade de mudar. A personagem Ludimila Correa percebe a futilidade do meio em que vive. Embora enjoada, não cogita em procurar outro caminho pois a opção sequer consta de seu campo mental. As vozes que passa a escutar trazem a proposta intermitente de modificação, mas ela não consegue identificá-la. Quando encontrou um lugar onde pôde livrar-se das amarras e assumir-se, as vozes passaram, ela sossegou e abraçou, ainda que instintivamente a nova condição. Com as devidas reservas de tempo, lugar e estilo literário, Ludimila irmana-se a Jacinto, protagonista d'A cidade e a serra, de Eça de Queirós.

Como descrição sócio-espiritual de parcela da geração atual, o êxito do livro de Nina Lemos é inegável. O que pode causar rejeição é o vocabulário entremeado de palavrões e de referências vulgares. Não devemos confundir nem a autora, nem o livro com seus personagens. Ela escreveu o texto, mas não deu à luz nem criou as figuras que descreve. O registro fiel e detalhado das observações denuncia a postura crítica do escritor em relação ao observado, a menos que suavize seu discurso com justificativas condescendentes. Onde encontramos descontração e jocosidade numa primeira leitura, acabamos enxergando censura. Visitando um "congresso de modelos" e deparando-se com a pouca idade das candidatas à vida nas passarelas, Ludimila anota: "Olho de novo para as meninas e faço uma associação maluca com todos os produtos fabricados na China que comprei. Quem foi que disse que só eles trabalham com mão de obra infantil, heim?".


Ricardo de Mattos
Taubaté, 26/7/2010

 

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