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Quarta-feira, 5/12/2001
Meu galinho Josué
Sergio Faria

Assunto de hoje na piscina do prédio: Casa dos Artistas. Que não-sei-quem deve ficar. Que fulana deve sair. Que não deviam ter feito sei-lá-o-quê. Que o Silvio poderia algo. Que o senador anda orgulhoso do filho. Que magina se pode mostrar aquilo. Que ontem foi lindo. Que a fulaninha é fingida. Putaqueopariu, o preço que se paga por uma nesga de sol e 2 metros quadrados de água anda alto demais. Tinha 3 anos que eu não botava os pés ali. Não volto nunca mais.

* * *

Calor. Parece que veio para ficar. Odeio. Só tem 4 coisas boas no verão. As pernas e os pés das mulheres, que voltam às ruas depois de se esconder do frio. O resto é sofrimento: calor, suor, irritação, mau humor, câncer de pele, excesso de luz, trânsito complicado, carro quente, despesa maior na lavanderia, preguiça, cansaço, lençóis molhados, sono interrompido, praia lotada, reflexo do sol no vidro traseiro do carro da frente, cupim voador entrando pela janela, horário de verão. Não leio o Catarro Verde, mas desconfio que uma pesquisa nos arquivos indicará altos índices de felicidade catarrenta nos meses frios.

Se as pernas e os pés das mulheres, agora peladinhos por toda parte, compensam todo o sofrimento do calor? Ora, claro que sim. Mulher compensa até CD do Leonardo, cara. E eu não consigo, ao menos neste momento, imaginar coisa pior do que um CD do Leonardo. Poderiam liberar a venda indiscriminada de espingardas de 2 canos, concedendo licença de caça às duplas sertanojas. Permanente.

* * *

TV ligada. O Enrugadinho Groisman está apresentando neste momento o Wando, a Daniela Mercury e a Roberta Close cantando perto de uma mesa de frutas. Roberta Close, em pé, está sempre de pernas abertas, graças à memória genética do pinto e do saco. Não há nada na TV que não se possa tornar ainda mais barato, vagabundo e vulgar. Nisso, o Enrugadinho Groisman jamais falhará. Os Marinho podem dormir tranqüilos.

* * *

No mesmo supermercado que tinha Teta de Nêga, encontrei uma funcionária que respondia perguntas com "seria". Eu tava procurando sopa Campbel's pra uma figura que me encomendara:

-­ Por favor, tem sopa em lata?
-­ Como?
-­ Sopa em lata, da marca Campbel's...
-­ Ah, seria na seção de sopas...
-­ Onde é?
-­ Seria perto dos caldos...
-­ Onde é?
-­ Seria onde tem tablete Maggi, Knorr...
-­ E onde é?!
-­ Venha comigo...
[Me levou até uma gôndola distante]
-­ Seria aqui...
-­ Então não tem, né, moça? Num tô vendo...
-­ Escuta, você falou que seria sopa em LATA?...
-­ Sim, da marca Campbel's...
-­ Olha, moço, eu nunca ouvi falar disso na minha vida... Magina, sopa em lata...
[E me olhou com pena, enquanto se afastava]

* * *

Ontem descolei uma verba, cheguei na Speranza, um casal tinha acabado de ocupar a minha mesa. Não se trata de mesa cativa, mas é a que mais gosto, portanto trata-se da minha mesa. Não gostei. É dessa mesa que eu curto ficar olhando as redondas entrando magras e saindo gordas, fumegantes, do forno a lenha, com seus 5cm de altura no corniccione [aquilo que chamam de borda]. Ali também costumo parar os garçons que partem com as pizzas, pedindo para vê-las de perto antes de irem para o salão. Adoro admirá-las ainda quentes, nervosas, perfumadas, a massa grossa, quase grosseira, como convém às receitas de Nápoles introduzidas no Brasil pelos Tarallo -­ a família criadora da Speranza. Foram eles que assaram a primeira pizza Margherita por aqui. E aquele casal ali, sentado na minha mesa. Como eu poderia sentar em outra, caralho? Chamei um garçom conhecido:

-­ Vai lá e convence o cara a mudar de mesa...
-­ Mas ele acabou de sentar...
-­ Melhor assim, não custa nada sair...
-­ Esse cara eu conheço, ele é invocado...
-­ Invocado eu também sou, você sabe...
-­ Mas...
-­ Vai lá e diz que eu sou aleijado, que preciso daquela mesa pra me encostar na parede, daí eu chego mancando...
-­ Tem outra mesa do lado, dá pra ver o forno...
-­ Mas eu gosto da minha, nunca troquei ela por outra...
-­ Quem sabe na varanda? Tá ventilado...
-­ De jeito nenhum. Vai lá. Fala pra ele que aquela mesa dá azar, que ele sai... Diz que ali morreu uma velhinha engasgada com pizza, a mulher dele vai querer sair...
-­ Mas eu não posso...

Não teve jeito. Acabei aceitando a mesa ao lado, de onde fiquei lançando olhares raivosos pro cara e olhando acintosamente as pernas da mulher dele. Desgraçado, ladrão involuntário de mesa. Quando veio o naco de tórtano que pedi em caráter de urgência urgentíssima, com um chope de bom colarinho e sem jacaré, sosseguei. O tórtano da Speranza é primoroso. Vê-lo ainda na forma, recém-saído do forno a lenha, é um privilégio. Trata-se de um pão redondo recheado de lingüiça, com uns 60cm de diâmetro por uns 25cm de altura, pesando quase 6 kg. Gorducho, interface amigável, bonachão, um buraco no centro, aparência externa de panetone. Soberbo. Você pede um naco [está bem, uma fatia], ele vem generoso, muitos pedaços grandes de lingüiça desmanchados a mão e incrustados na massa feita com banha de porco na receita secreta. Massa de napolitanos, rústica, sem concessões à delicadeza de aparência. Entretanto, sublime na mistura de sabores, perfumes e texturas que se libertam na boca. Ontem fantasiei encomendar um tórtano inteiro para usar como travesseiro no inverno. Acordaria no meio da noite, daria uma mordida e voltaria a dormir feliz. Preciso examinar minhas vidas passadas. Em alguma época devo ter sido gordo. Vocação é o que não me falta.

* * *

Meu galinho Josué
Hoje senti saudade do meu galo Josué. Sou muito ligado à vida urbana mas já tive minhas veleidades galináceas, por assim dizer. Não, nada a ver com galinhar. É que já criei pato, galinha, codorna, garnizé, marreco e outros bichos. Tudo num quintal grande, chão de terra e grama. Um dia, no meio de uma grande ninhada de pintinhos, nasceu um que mal conseguia ficar de pé. Parece a história do patinho feio. O bichinho praticamente se arrastava, porque uma das pernas funcionava muito precariamente. Foi crescendo junto aos irmãos e irmãs, e nada da perninha sarar. Tomei as providências que pude, mas tratava-se de um aleijadinho incurável. O momento que me dava mais pena [ooops] dele era à noite, quando todos dormiam num poleiro que fiz usando cabos de vassoura. Como não conseguia subir no puleiro, o coitado tinha que dormir embaixo, no chão. E os outros passavam a noite cagando em cima dele. Precisava da companhia dos demais para dormir, eu acho, e habituou-se à humilhação por causa disso. De manhã, antes de sair, eu limpava as penas do cagadinho. No quintal havia um galo só, claro, chamado Gilberto -­ o rei do terreiro, que comia todas as galinhas. Meu regulamento era mandar os machos todos pra panela, mantendo vivas as fêmeas. Assim o quintalzão me garantia rangar frango saudável e ovo de quintal, daqueles que têm a casca azulada e a gema vermelhinha, vermelhinha. Nada de ração com hormônio e antibiótico. Todos e todas se viravam ciscando e aproveitando os restos da cozinha. E o dia da panela foi chegando praquela ninhada do aleijadinho. Franguinhos quase no tamanho e peso ideais pra dançar. E franguinhas quase no tamanho e altura ideais para serem enrabadas pelo galo Gilberto. Ia ser também o fim do sofrimento do franguinho cagado, eu me resignava. Na manhã do abate, não sei por que, mudei o combinado com a empregada e adiei. Fui trabalhar. De repente, no meio da tarde, ela me liga. Pasma. O franguinho aleijado tinha começado a andar! Peguei o carro e voei pra casa. Quase não acreditei quando vi o bicho normalzinho ali, andando de um lado para o outro, ciscando na companhia dos irmãos. Naquele instante decidi que jamais o mataria. Batizei-o de Josué, por razões políticas que não cabe explicar aqui. E, pela primeira vez, aquele terreiro passou a ter dois galos. O Josué cresceu e a porrada comia solta entre ele e o Gilberto. Até que aprenderam a dividir os territórios e as galinhas, cada bando pro seu lado, o pau quebrando só uma vez ou outra. Meu galo Josué ficou grandão, vistoso, um galo bacana, compensou a infância humilhante com um jeitão imponente, garboso, bom de espora, a crista altiva, o canto alto e afinado. Dava pra perceber que o antigo rival já o respeitava. E de longe, sem encarar. Um dia dei o Gilberto de presente para a empregada, homenageando o Josué com a posse total do terreiro e das galinhas. Ele soube reinar absoluto, com dignidade e paixão, tornando-se o pai competente de várias ninhadas. Hoje está enterrado ao pé de uma mangueira que plantei e que cresceu com ele. A alguns metros de distância, ao pé de um abacateiro, está a Ula, uma das minhas vira-latas desse tempo. Alguma coisa matou os dois no mesmo dia. Nunca vou saber o que foi. Chorei muito, como estou chorando agora, de tanta saudade que me deu do meu galinho Josué. Desculpe não terminar, mas não consigo mais escrever.

Para ir além
˘AtaRrO vEŽDe

Sergio Faria
São Paulo, 5/12/2001

 

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