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Sexta-feira, 7/12/2001
Um dia que mudou a história
Rafael Azevedo

Bruno Weiszflog

Não, não estou falando de 11 de setembro de 2001, mas sim de outra data, muito, muito mais antiga. Um dia longínquo, mais especificamente uma tarde, em outubro de 732, em alguma planície verdejante entre as cidades francesas de Tours e Poitiers, onde o destino da humanidade foi traçado. A civilização ocidental, as we know it, foi desafiada e por pouco não sucumbiu a uma ameaça até então desconhecida, mas que nos é muito familiar nestes dias de Osama bin Laden, Hamas e Hizbollah, aviões suicidas e anthrax. Neste dia Carlos Martel (Charles, ou Karl Martell), tio-avô de Carlos Magno, liderou um exército de francos que derrotou mais de 60.000 muçulmanos, entre árabes, beduínos africanos e convertidos ibéricos que vinham saqueando todo o sul da França, tendo inclusive já derrotado e posto para correr Eudes, o duque da Aquitânia.
É preciso explicar que o que hoje chamamos de França ainda não existia; ainda não havia unidade entre os povos que habitavam aquele território, chamados pela designação vaga de "francos". O país, que ainda era conhecido como Gália, nada mais era que uma série de ducados e pequenos reinos que tinham em comum a influência romana em sua população e germânica em sua elite, todos cristãos, que lutavam como podiam contra invasores germânicos pagãos vindos do norte, visigodos do sul, além dos próprios muçulmanos (sarracenos ou mouros, naquele tempo) vindos do sul, da península Ibérica. Desde 711 estavam presentes na Europa, tendo conquistado com relativa facilidade o que hoje é Espanha e Portugal da mão dos desorganizados visigodos, onde chegaram a desenvolver uma nação razoavelmente avançada em termos culturais e científicos. Mas isso foi depois, bem depois dessa fatídica tarde de outubro. Até então, os árabes, se é que posso assim chamá-los, estavam mais empenhados em expandir e assegurar seu domínio em solo europeu, e saquear os territórios "infiéis"; após a conquista do território ibérico iniciaram uma série de incursões ao sul da França, cruzando os Pireneus com pequenos exércitos e fixando eventualmente uma base para estes ataques em Narbonne. Não demorou para que liderados pelo recém-nomeado governador de Córdoba, 'Abd-ar-Rahman (ou Abderraman, como foi registrado nas crônicas medievais), general bem-sucedido, tido como modelo de virtude islâmica, resolvesse tentar uma cartada mais ambiciosa, invadindo com um exército enorme o território francês. Encontraram uma pequena resistência, liderada pelo já mencionado duque da Aquitânia, que seus soldados não tiveram problema em derrotar, e logo estavam saqueando todo o sul da França, penetrando cada vez mais no território e chegando em pouco tempo ao centro do país, mais especificamente na cidade de Tours. Uma vez conquistada essa cidade, seria muito fácil para as forças islâmicas penetrarem a Europa, através da enfraquecida e fragmentada Itália, e da ainda inexistente Alemanha. O Ocidente vivia seu momento mais crítico desde a queda de Roma. Mas o apavorado Eudes já tinha corrido, no entanto, pedir socorro a seu maior rival, Carlos Martel. Este posicionou as suas tropas nos arredores de Tours, já antevendo que a sede dos sarracenos por ouro lhes levaria até a catedral de São Martinho - jóia da cidade - e ali esperou por eles. A batalha foi longa, durando dias, segundo fontes de ambos os lados, mas eventualmente terminou com uma vitória acachapante do exército de Martel - segundo consta, teriam morrido dez vezes mais muçulmanos que cristãos. Nunca mais os mouros cruzaram os Pireneus, ou tentaram penetrar na Europa por ali novamente. Muito foi especulado quanto ao motivo por que os francos teriam ganho essa batalha, e quanto às consequências que isso trouxe ao mundo de hoje em dia. Quanto ao primeiro, estrategicamente o motivo mais claro parece-me a estratégia adotada pelo exército de Martel, composto basicamente por infantaria: permaneceram juntos, compactos, seguindo o modelo das falanges dos exércitos romanos e macedônios da antiguidade, o que revelou-se letal para a cavalaria esparsa dos sarracenos. Mas os próprios cronistas árabes não tiveram pudor em reconhecer que a principal razão de uma derrota tão humilhante foi sua sede por ouro, por saques, e sua ânsia em manter o que haviam roubado; pois no meio da batalha, quando a situação ainda estava indefinida, Martel teve uma idéia de gênio - mandou que Eudes atacasse os sarracenos pelos flancos, concentrando-se no acampamento deles, onde estavam estocados tudo o que haviam "conquistado" em suas incursões pela França. Preocupados com o destino de seu ouro, muitos resolveram abandonar a frente de batalha e voltar para proteger o que julgavam ser seu. Nesse meio tempo, Martel liderou um contra-ataque fulminante, onde acabou matando Abderraman himself. Sem o líder, o resto do exército mouro retrocedeu. Ao amanhecer, quando os francos esperavam continuar a batalha, descobriram que não havia mais ninguém no acampamento árabe; haviam ido embora na calada da noite, levando apenas o que restara de seu ouro, suas armas e seus cavalos. Já quanto às consequências da vitória cristã... houve até quem sugerisse que esse fato foi na verdade algo ruim para a Europa, pois preveniu os europeus analfabetos e incultos de entrarem em contato com uma cultura que na época era muito superior à sua. Como diria Paulo Francis, waal... Algo muito eloquente, seguramente, lindíssimo na teoria, mas que não se revela verdadeiro diante das provas que nos apresenta a história. O Islã poderia mesmo ser mais avançado, na época, tendo resgatado inúmeras coisas do conhecimento grego e romano que haviam sido perdidas com o fim de Roma; mas enquanto o cristianismo demorou, passou por inúmeras provações, eventualmente ele se desenvolveu e nos presenteou com coisas fantásticas como o Renascimento, ou o desenvolvimento tecnológico e científico incomparável que temos hoje; já o islamismo caiu nas armadilhas de sua própria doutrina, e ficou preso num estágio medieval, após séculos de primazia intelectual. Seus cientistas e pensadores acabaram limitados pelas grades que a religião lhes impunha, e não tiveram a inventividade de, como seus colegas cristãos, "olhar pelas frestas" dessas grades para o futuro, libertando-se do passado; centrados em seus próprios umbigos, e proibidos por suas crenças de quaisquer intercâmbios com os "infiéis", os sábios muçulmanos tinham poucas alternativas a não ser dedicar-se ao estudo do Islã e de seu glorioso passado, à medida que o tempo passava. Os médicos muçulmanos, que já haviam sido os mais sábios de seu tempo, já não podiam abrir corpos para estudar o corpo humano ou realizar uma cirurgia; os filósofos que tentavam entender o mundo além dos ditames do Corão eram execrados e executados. Assim, a própria rigidez do Corão, que foi a principal motivação de seu desenvolvimento, acabou por estrangulá-lo, e reteve seu povo no estágio primitivo em que hoje se encontram.
Escapamos dessa por pouco.

Rafael Azevedo
São Paulo, 7/12/2001

 

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