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Terça-feira, 28/9/2010
Guimarães Rosa em Buenos Aires
Wellington Machado

Diego é atendente e vendedor de livros. Trabalha na livraria El Ateneo, em Buenos Aires, considerada uma das mais belas livrarias do mundo. Ele aparenta ter uns 25 anos e tem cara de universitário. Assim como os outros vendedores da loja, veste camisa branca, gravata, calça social e sapato preto ― para manter o estilo clássico do ambiente e, claro, não negar a elegância portenha . É educado e prestativo. Fala baixo e mostra-se sempre interessado em um bom papo quando o assunto é literatura. Nota-se que ele tem um certo prazer naquilo que faz. Nada muito difícil, aos olhos de quem vê, diante da exuberância da El Ateneo (experimente, leitor, buscar imagens na internet do interior da livraria), do jazz tocando baixinho no ambiente e do aroma de café que vem da cafeteria ao fundo.

No último mês de junho, fizemos (eu e minha esposa) uma "viagem-mochila" a Buenos Aires. Conseguimos um hotel barato e umas passagens promocionais, o que nos permitiu ficar dez dias na cidade. Seguimos a primeira regra do turista "garimpeiro": abandonar o city-tour. É claro que os pontos turísticos mais badalados foram visitados (não há como ir a Nova York e não subir no Empire State), mas dedicamos o devido tempo a cada um, de acordo com a importância do lugar. É claro que o show de tango, exclusivamente turístico, "brega-hollywoodiano", foi abandonado. Na verdade foi substituído por uma bela apresentação de rua, com direito a bandaneon e violão primorosamente executados. De graça!

Muito além de conhecer o trivial, propus-me a elaborar um roteiro cultural; queria fazer uma pesquisa de campo em artes, saber como a cidade vive culturalmente, pegar em livros, conhecer livrarias etc. A "pedra fundamental" das andanças (regra dois: andar a pé) pela capital foi o poema "As ruas", de Jorge Luis Borges, publicado em Fervor de Buenos Aires: "As ruas de Buenos Aires/ já são minhas entranhas./ Não as ávidas ruas,/ incômodas de turba e de agitação,/ mas as ruas entediadas do bairro,/ quase invisíveis de tão habituais".

Turismo é "experiência tátil", digamos assim, na minha concepção. A melhor forma de conhecer uma cidade, suas ruas, o povo, a cultura, é "viver a cidade" ― e não apenas "passar" pela cidade, incólume. Sentir seus sabores, seus aromas; perceber seus sons. Ser o mais nativo possível. Abandonar sua cultura (a do viajante), pelo menos naqueles dias, e se entranhar na cultura alheia. Para fazer isso, só andando o máximo possível ― a pé. Quando não for possível, de metrô ou ônibus, onde se tem contato direto com as pessoas. Conhecer a cultura argentina implica em ser o mais argentino possível. Andar pelas "entranhas", como pregava Borges; conhecer o undergound. Em Buenos Aires eu quis ser Borges em seus labirintos. E há uma maneira prática de ser Borges, ou de ser Cortázar, ou Roberto Arlt: os lugares por onde eles passaram estão em um pequeno guia (Buenos Aires Literária) distribuído nos postos de informações espalhados pela cidade. Fiz o caminho de Jorge Luis, pois eu queria ser Borges.

Estive com o Diego; e ele me surpreendeu. O vendedor entende de literatura! Sinceramente, não estou acostumado com atendentes que conhecem de livros aqui no Brasil ― sei que há exceções. Conversei com ele sobre literatura argentina e brasileira. Não escondo que carrego um certo "orgulho patriótico", qual seja, o de querer saber o que o estrageiro pensa do Brasil. Um Narciso sem reflexo, diria. Perguntei, então, quais os autores brasileiros ele já tinha lido. Diego conhece Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Machado de Assis e Guimarães Rosa. Ao saber que eu, em Belo Horizonte, estava a 70 quilômetros de Cordisburgo (terra de Guimarães Rosa), Diego se alvoroçou: "Sertão? Guimarães Rosa? Você é o Rosa!", decretou. Diego me chamou de Rosa de forma bem-humorada. Uma homenagem.

Mas eu não queria ser Rosa; queria ser Borges. E parti pelas entranhas de Buenos Aires, no meu mapeamento cultural da cidade. Passei pela Praça Cortázar. (Curioso é que a Praça Cortázar fica no bairro onde Borges morava, em Palermo). Caminhei pela rua Jorge Luis Borges, com seus jardins, paralelepípedos; lojas aconchegantes vendendo artigos sofisticados; livrarias charmosas, onde eu pedia aos vendedores auxílio para pronunciar o nome completo do escritor. Sim, pronunciar "Jorge Luis Borges", arranhando a garganta como os argentinos fazem com habilidade, é uma tortura para mim. Mas em Palermo foi onde eu mais me senti Borges. Por um momento imaginei a angústia do escritor, no final da vida, ao não poder enxergar o que eu podia ver.

Várias iniciativas literárias pululam na cidade. No Malba (Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires) estava programada uma palestra com o escritor Ricardo Piglia, denominada "Nuevas tesis sobre el cuento". No mesmo museu, uma ideia bem interessante: "El libro del mês". A cada mês, o museu escolhe um clássico da literatura e convida um intelectual para falar sobre o livro. No mês de junho, a obra escolhida foi Anna Karenina, de Tolstoi. Está lá no Malba também, para quem não sabe, o nosso maior símbolo modernista: o Abaporu, de Tarsila do Amaral. Quando o vi, confesso que a minha face Borges cedeu ao orgulhoso Rosa.

Continuando a caminhada pela cidade, regada a muito café para espantar o frio cortante, fui ver de perto obras de Rodin, Kandinsky, Picasso, Monet, Renoir, Cézanne, Munch, Miró e Van Gogh no Museo Nacional de Bellas Artes, um dos maiores acervos da América Latina. Em arquitetura, não há como não se surpreender com a exuberância dos teatros Colón e Cervantes. Aliás, a arquitetura de Buenos Aires surpreende muito, mas muito mais do que se espera encontrar.

Estatísticas apontam Buenos Aires como a cidade das livrarias. A Corrientes é considerada a avenida com a maior concentração de livrarias e sebos. Impressionou-me, ao percorrer as estantes, o valor que o argentino dá à memória cultural. São vários livros de história que são expostos na entrada, nas vitrines e nas mesas de centro, concorrendo com os lançamentos em ficção. Interessante também como eles fazem questão de manter acesas as chamas dos seus escritores consagrados. Há várias reedições de Borges, Cortázar, Sábato, Tomás Eloy Martínez, em vários formatos. Ricardo Piglia pareceu-me ser ainda o melhor escritor vivo. Dos escritores estrangeiros, há uma avalanche de Paul Auster, Saramago e Bolaño. Mas estão lá também os globalizados crepúsculos e vampiros.

Notei que há uma valorização do jornal impresso, apesar da tendência mundial de acabar com eles. Tive a sensação de que o jeito argentino de preservar a sua arquitetura e sua memória contamina, de forma indireta, a preservação de outras tradições. Os jornais nos cafés e metrôs é um hábito arraigado. E isso vale para as revistas também. Não sei como conseguem manter uma revista, só para exemplificar, como a dedicada ao cinema El Amante ― Cine, uma revista densa, repleta de artigos e ensaios sobre a sétima arte. Talvez seja o reflexo do sucesso argentino no cinema nos últimos anos.

Mas o que surpreendeu "o Rosa" foi o Diego falar sobre literatura brasileira. Sobre Clarice Lispector, disse que já tinha lido vários livros da escritora e que a achava "feminina e introspectiva", que sua literatura tinha "muito de psicológico". Peguei na estante uma edição d'O Alienista, de Machado de Assis, e disse-lhe que se tratava de uma obra-prima, que o escritor era um orgulho para os brasileiros. Ele concordou e afirmou que gostara muito do livro. O vendedor trouxe-me uma edição do Grande Sertão: Veredas. Disse que o considerava um livro difícil, que já tinha lido até a metade, depois tantara ler novamente, mas desistiu da empreitada. Mas falou tudo isso de uma forma bem respeitosa.

Mas a minha surpresa maior foi quando começamos a falar sobre cinema. Pedi a ele para citar alguns filmes brasileiros que o marcaram. Ele tascou de pronto: Tropa de Elite e Central do Brasil. Citou Glauber Rocha e, pasmem, disse que adorou o Vidas Secas(!), do Nelson Pereira dos Santos. Esqueci de perguntar sobre como ele chegou a este filme ou o que o motivou a assisti-lo.

A brincadeira com "o Rosa" foi sadia. Assim como vários críticos, o argentino também compara ― ou faz um paralelo ― entre Borges e o Guimarães Rosa. Particularmente, acho que são literaturas diametralmente distintas. Vejo o Borges como um escritor eclético, principalmente no manejo do espaço e tempo, nas várias formas de narrar que experimentou. Já o Guimarães Rosa é mais centrado no sertão (que na verdade é o mundo) e, em matéria de linguagem, fez uma revolução. Mas ambos são universais e igualmente grandes. Só acho que são escritores díspares, infinitamente distantes. Tão distantes como eu queria ser Borges ― e não Rosa ― naqueles dias.

Nota do Editor
Wellington Machado de Carvalho mantém o blog Esquinas Lúdicas.

Wellington Machado
Belo Horizonte, 28/9/2010

 

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