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Sexta-feira, 5/11/2010
Professoras, maçãs e outras tentações
Ana Elisa Ribeiro


LIANA TIMM© (http://timm.art.br/)

Foi uma professora que me disse que títulos de textos devem resumir a ideia principal. Tenho a maior antipatia por esse ensinamento até hoje. Desde que descobri que a vida não é assim, desse jeito, exatamente, comecei a refrear meus impulsos de acreditar em tudo o que os professores diziam. E olhem que eu nem sou dessa tal geração Y ou digital ou nativa isto ou aquilo. Eu era uma pobre estudante de escola pública (boa, frise-se), num mundo ainda popularmente analógico (nos bastidores, o computador e a internet já existiam).

Para compensar a decepção com a professora que desensinava a fazer títulos inteligentes, tive boas aulas de Física, melhores ainda de Química e um espetáculo de aula de Biologia. Só consigo explicar mínimas coisinhas para o meu filho hoje porque as aulas sobre DNA e RNA foram bacanas. E aquelas sobre campo magnético, empuxo e vetores ficaram grudadas na memória, na boa memória, diga-se. Não aquela associada, comumente, à decoreba, mas aquela de longo termo, que guarda as coisas que a gente realmente aprende.

Um único ser (estranho, aliás) nesta vida me fez aprender algo de matemática. O método não era lá muito ortodoxo, mas funcionou (talvez porque a aluna também não fosse muito certinha). O cara, que acreditava em alienígenas e dizia fazer, frequentemente, viagens astrais, dava umas eficientes aulas de escalonamento e, mais fascinante ainda, ensinava teoremas como se fossem poesia pura. Vai ver até são, mas é preciso saber experimentar. Ele se babava de tanto amor aos bichinhos. Gastava alguns quadros (negros, lousas, como preferirem, mas daquelas escritas a giz, com bastante atrito) por aula, escrevendo, escrevendo, escrevendo aquelas fórmulas imensas, cheias de meneios de lógica e visão, para, ao final, deixar a sigla, fantástica, c. q. d. Era o ápice, o auge, a epifania. Até eu, que nem era dada a essas linguagens tão abstratas, curtia demais o "como queríamos demonstrar" assinado ali embaixo, à direita do quadro-negro.

Minha maior nota no vestibular (que ainda existia e era exigente)? Química. Ela mesma, suas fórmulas, ligações, desenhos e forças. Os elementos, suas valências e seus números de massa. Muitos já se foram desta memória tão mais treinada em palavras, mas algo ainda resta.

Outro dia, participando de um trabalho em Brasília, uma equipe de revisores de português lia textos sobre enfermagem, medicina e veterinária. Lá íamos nós, passeando pelos nomes científicos, pelas espécies, pelos prontuários hipotéticos e estudos de caso. E então as aulas da escola e aquelas tidas informalmente com amigos, ex-namorados e parentes surgiam e ressurgiam na leitura dos documentos. "Cair da própria altura", dizia a revisora do Recife. Existe isso? Sim, claro, é o vulgamente conhecido como "tombo". E me lembrei dos amigos médicos e fisioterapeutas comentando sobre os prontuários de bêbados que racharam o coco no chão. E em que momentos a gente não aprende?

Não tem jeito. Aprender é um negócio balístico, inexorável, irrefreável. Aprender é até sem querer. Abriu os olhos, aprende. Inclusive (e principalmente) coisa errada. E também as certas. Aprende com o que os outros dizem e com o que fazem, especialmente. É uma luta incessante ser professor de escola, às vezes contra todos os outros professores que atuam fora da escola. O mestre (diplomado) diz "não jogue lixo na rua, menino"; o pai do menino faz o lixo voar pela janela do carro. A mestra (diplomada) diz "não fale palavrão, menina"; a mãe da guria não se contém nem com a novela das oito, xingando todo tipo de palavra cabeluda. O professor de literatura puxa daqui e dali, adota um livro famoso, desses de autor consagrado. Lá vai a mãe do aluno processar o professor porque o livro tem palavrão. Ai, santa inocência. Santa hipocrisia.

Outro dia foi "dia do professor". É parabéns daqui e da dali. Chuva de elogios no Twitter. Distribuição de livros, cafezinho no corredor, maçãs vermelhinhas em cima da mesa. Oba, alguém me deu os parabéns assim, meio fora de contexto. Que coisa boa. Mas, vejam, eu quero minha parte em respeito. E, por que não, em dinheiro. Não sei qual dos dois renderia mais na minha poupança de dignidade.

Uma grande massa de xingos, desrespeitos e notícias passa o ano acusando o professor e a escola de todas as culpas do mundo. Além de ser malformado, incompetente e pobre, agora o professor também tem a obrigação de estar à frente em todas as tecnologias, de administrar cinco ou seis contas de e-mail e redes sociais da moda e ainda resguardar sua vida privada. Tem de estar atento ao bullying, tirar piolho dos meninos e interceptar beijos mais quentes de adolescentes no corredor. A escola tem de ser creche, prisão, educandário, lan house, restaurante e hospital. Agora é obrigação dela educar, ensinar a ler, escrever, contar, digitar, ter bons modos e colaborar, porque as assimetrias acabaram e o professor tem de assumir a postura de um mediador, facilitador ou seja lá que nome isso tenha.

Os grandes mestres do passado, aqueles da matemática c. q. d. ou da biologia das células, provavelmente já se aposentaram. Não duvido nada que as aulas da Ana Lúcia fossem muito mais bacanas e interativas hoje, com Prezi, efeitos de Flash e projetadas num quadro branco, com alta resolução. Tudo pronto, feito em casa, num pen drive, só pra ela narrar e apontar. Não duvido mesmo. O que me aluga muito é esse choque de discursos que vem atormentar os ouvidos de quem nunca, nem um dia no ano, recebe respeito de fato, especialmente institucional. Os românticos que me desculpem: nada pessoal, mas quero minha parte em salário, formação e respeito.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 5/11/2010

 

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