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Quinta-feira, 4/11/2010
A arte da ficção política
Vicente Escudero

A vitória da candidatura de Dilma Rousseff encerrou uma das campanhas mais retrógradas desde a edição da Constituição Federal de 1988 e do retorno da democracia no país. Sites, jornais e programas de televisão passaram quase todo o período da campanha noticiando fatos que poderiam fazer parte da programação e do noticiário de cinquenta, cem anos atrás. De repente, citando apenas um dos absurdos das campanhas, dois candidatos reconhecidos como defensores da legalização do aborto foram impelidos, ou decidiram praticar a extrema unção antes da apuração das urnas, a defender outros ideais e se aliar a setores conservadores da sociedade, contra a legalização do aborto. Não se trata de menosprezar a representatividade dos defensores desta opinião, mas apenas de questionar o maleável conjunto ideológico de pessoas dispostas a governar o país por quatro anos.

Nestes momentos de dúvidas preponderando sobre certezas, em que existe a necessidade imediata de ajuste na política econômica para evitar a volta da inflação, valorizar a produção nacional e evitar a guerra cambiária com outros países, as melhores soluções só podem surgir através de um balanço honesto destes últimos meses, quando os candidatos se apresentaram e disseram, ou pelo menos deveriam ter dito, a que vieram. Um retrato do que foi o antes, durante e depois desta eleição que elegeu nossa primeira presidenta, e pela primeira vez fez uso oficial desta horrível denominação.

Antes da campanha oficial
Disputas internas marcaram a escolha do candidato do PSDB. Correndo por fora, Marina Silva e o PV escolheram como vice o presidente da Natura, Guilherme Leal. O PT então cria um consenso em torno da candidatura de Dilma Roussef, apresentada pelo atual presidente como a "mãe do PAC". Aécio Neves, contrariado, abre caminho para a candidatura de Serra; Marina começa a trabalhar sua imagem por todo o país enquanto Dilma surfa na onda da popularidade de Lula, tentando reverter as projeções das pesquisas de opinião, que a sete meses da eleição dão ampla margem para uma vitoria de José Serra. Lula impulsiona Dilma, apresentando-a durante sua peregrinação pelo país para promover as obras do PAC. O PSDB desdenha do aumento da intenção de voto da candidata. Marina ainda briga por espaço em busca de apoios para sua candidatura.

O salto alto do PSDB e da direita fez com que este início de campanha e os aumentos das intenções de voto na candidata do PT fossem tratados apenas como questões circunstanciais, que seriam revertidas durante o horário eleitoral gratuito e do início oficial das campanhas. Sem um discurso afinado e definição de um vice para ocupar a chapa, a candidatura de José Serra começa perdendo fôlego. Marina ainda não passa dos 3% nas intenções de voto.

Durante a campanha oficial
PT e PSDB não definem os vices para as chapas até alguns meses antes das eleições, erro que o PSDB manteve durante muito tempo, discutindo até a mudança de vice já na disputa de segundo turno. Dilma continua voando com Lula entre os estados, inaugurando até maquetes de projetos. A campanha de Serra comete o erro de trabalhar seu discurso de acordo com o humor das pesquisas eleitorais. A cada setor da sociedade em que era constatada a perda de votos, o candidato acenava com uma benesse específica: para os aposentados, aumento da aposentadoria, para os funcionários públicos, aposentadoria integral. Sem projetos específicos, as duas candidaturas assistem a lenta ascensão de Marina Silva e seu discurso claro, embora uníssono, de crescimento sustentável. Começam os ataques rasteiros e a guerra na internet. Blogs, revistas e jornais assumem abertamente o apoio a uma das candidaturas e passam a cobrir a disputa de forma, segundo eles mesmos, isenta.

Surgem as denúncias contra Erenice Guerra, a substituta de Dilma Roussef na Casa Civil. Marina Silva já chega próximo dos 10% nas intenções de voto. A oposição mantém o foco nas denúncias de quebra de sigilo de membros de seu partido, ocorridas no período das pré-candidaturas, supostamente realizadas a mando do PT, e permanece sem um discurso que apresente um plano de governo. Nas vésperas do primeiro turno, cresce a campanha difamatória na internet e a questão do aborto é levantada pela oposição contra a candidata do governo, fazendo com que Marina Silva alcance quase 20% dos votos no primeiro turno e forçando a realização de um segundo turno entre os candidatos do PSDB e do PT.

A discussão rasa permanece durante o segundo turno, com os dois candidatos tentando arregimentar os eleitores da candidata do PV, Marina Silva, que declarou a neutralidade sob o argumento de que a polarização entre os dois partidos seria nociva ao país e representava a manutenção do conservadorismo, além de transformar os eleitores em mera plateia, enquanto deveriam ser os atores do processo político. O PSDB trabalha duro com Aécio e Alckmin tentando arregimentar eleitores em seus estados para Serra, ainda que eles não parecessem estar convictos do papel.

O tom permanece o mesmo até o dia da votação. No único momento em que a realidade e a ficção pareciam se confundir, em que os candidatos foram confrontados por eleitores indecisos no último debate realizado na Globo, o marketing político tentou maquiar a cara amarrada dos eleitores que acompanhavam na estúdio e faziam perguntas como "Já fui assaltada com uma arma na cabeça, na porta da minha casa... Como resolver o problema da segurança?" As respostas vieram em tom paternal, como de uma professora que é questionada por um aluno que entende mais do assunto do que ela. Dilma e Serra responderam começando com um singelo "Muito boa, importante, a sua pergunta" e terminaram sem apresentar uma solução concreta. Nenhuma novidade.

Eleição de Dilma
Dilma é eleita com 56% dos votos válidos enquanto Serra vence apenas na região Sul. No seu primeiro discurso, meticuloso, Dilma reitera o compromisso com a liberdade de imprensa e de expressão, dando sinais de que fará um ajuste na economia logo no início de seu mandato. Serra marca posição, demonstrando que permanecerá, em suas próprias palavras, nas trincheiras criadas pelo partido com a votação expressiva obtida nos dois turnos da eleição. Agradece a todos, exceto Aécio Neves.

O que esperar do novo governo e da oposição? Dilma é uma incógnita na forma como constituirá seu ministério, mas parece acenar com a manutenção dos programas criados durante o governo Lula. Não vejo nenhuma ruptura democrática no horizonte, como alardeado pela oposição durante toda a campanha. Aliás, rupturas democráticas costumam acontecer em democracias onde a oposição não cumpre seu papel de forma responsável, marcando posição contra as investidas totalitárias dos governos. Esse é o único rumo que restou para a oposição, além de se renovar e resolver seus problemas internos. É exigir muito de quem pretende assumir a presidência da república?

Vicente Escudero
Campinas, 4/11/2010

 

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