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Segunda-feira, 20/12/2010
Mulher no comando do país! E agora?
Débora Carvalho

Já não basta comandar o fogão, a educação dos filhos, o orçamento doméstico, as salas de aula... Elas foram se infiltrando no trabalho ― depois de sofrer muito preconceito por serem consideradas incapazes. E agora, no Brasil, a primeira presidenta. Me lembro da sacada que ela teve ao puxar para si os votos de Marina Silva, no segundo turno, dizendo que mais da metade da população manifestava o desejo de ver uma mulher na presidência...

Me lembro também que, antes dos meus 9 anos de idade, foi a vez da Luiza Erundina. O fato de ela ser mulher e prefeita virou motivo de chacota nos corredores do condomínio, e até mesmo em casa ― entre os amigos do meu pai.

― Onde já se viu uma mulher na prefeitura de São Paulo? Vai afundar a cidade. Lugar de mulher é no fogão.

E, depois de um tempo, todo mundo reclamava da buraqueira no asfalto. "Os buracos da Erundina." E eu percebia até um pouco de maldade, sem entender direito o que significava (como quando alguém diz uma coisa querendo dizer outra mas você não entende o contexto porque não conhece a palavra, mas nota algo no tom de voz). Pirralha ainda, eu não entendia o contexto nem o conceito.

Minha família, à moda dos tempos das fazendas, é bem grande. Primogênita de seis, tenho quatro irmãos e uma irmã. Eles destruíam minhas bonecas e eu ajudava. Minha mãe conta que quando eu era bebê, não podia ver uma boneca que abria a boca a chorar ― morrendo de medo, quase apavorada. Então, eu brincava com meus irmãos de carrinho, de bolinha de grude, de fazer e soltar pipa, de futebol no meio da rua. As pessoas comentavam. Uma vez ouvi uma senhora criticando minha mãe por permitir que eu brincasse de bola com meus irmãos e os amiguinhos deles.

Por outro lado, assim como eu aprendi a cozinhar bem cedo, todos os meus irmãos também aprenderam. Casados, eles é que ensinaram as esposas a melhorar o desempenho no fogão. No entanto, isso também era visto de modo estranho por algumas pessoas.

Interessante como quando a gente é criança escuta conversa de adulto e não entende direito, mas sabe que tem algo misterioso... Depois que cresce e aprende o significado daquelas palavras desconhecidas, cai a ficha. ("Cai a ficha"? Isso não existe mais. Bem, poderíamos substituir a expressão por algo tipo "fazer o download", mas eu ainda sou do tempo do orelhão de ficha, que existiu até os meus 18 anos.)

A Erundina foi prefeita e os comentários eram que todo mundo votou nela achando que ela não ia ganhar mesmo. E que só por isso ela ganhou.

Mas... se ela foi boa ou péssima gestora (coisa que não tenho condições de avaliar), o que tem a ver com o fato de ser mulher ou homem?

O mesmo no caso de Barack Obama, nos Estados Unidos, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Quanto drama em torno da quantidade de melanina na pele...

Por aqui a polêmica girou em torno do sexo do novo gestor do país. Será que uma mulher mereceria o cargo? Marina, Dilma... Em muitas rodas, e andando pela rua, nos corredores dos shoppings, parques e até na fila do supermercado, ouvi cada tipo de comentário...

É incrível como ainda vivemos em uma cultura preconceituosa em relação à cor da pele e ao sexo. Gente que presenciou e usufruiu tanto desenvolvimento da tecnologia, que viu surgir a televisão, o celular, o computador, a internet, a internet no celular, o cinema 3D, a webcam, os blogs, o Facebook e o Twitter, e agora a TV 3D... os robôs, as naves da Nasa... transplante de rosto, o uso das células tronco, a Dolly... o Lula presidente em dois mandatos e agora uma mulher na presidência. Mulher no poder?

Enquanto alguns criticavam o fato de ela ser mulher (mulher não dá conta disso não, mulher é emotiva demais, é o Lula quem vai continuar mandando...), muitos nem analisavam as competências pessoais e escolhiam a candidata por ser mulher. Lembro desse gancho na propaganda do segundo turno: "Juntando os meus votos e os da Marina, XX% dos brasileiros manifestaram o desejo de ter uma mulher na presidência." (Vou dar uma chance para ela; mulher sabe administrar melhor; mulher é mais sensível, vai saber ouvir os problemas do povo.)

Particularmente, o sexo não esteve na minha lista de motivos para votar. Na verdade, como a maioria dos brasileiros, infelizmente, entendo ou me interesso pouco por política. Mas, historicamente, não consigo entender essa cultura que costuma julgar positiva ou negativamente baseado no sexo. Recordo as aulas de história e o quanto as mulheres sofreram para conquistar autonomia. Também não sou feminista. Depois que me casei, menos ainda. Apesar de contribuir bastante com o orçamento doméstico, gosto de saber que não dependemos só da minha receita e que alguém se preocupa e cuida de mim. Mas ficaria doente se minha única atividade fosse em torno dos afazeres domésticos. E também admiro quando meu marido ajuda em casa no fim de semana quando a "secretária" não vem.

Mas, voltando ao assunto, eu bem gostaria de ver a cara daqueles machistas ― que já morreram ― recebendo o resultado do segundo turno. Provavelmente tentariam planejar um atentado só porque não seriam capazes de se sujeitar ao poder de governança nas mãos do "sexo frágil".

No Twitter, vi um post dizendo que a candidatura da Dilma era o cúmulo da petulância, pois ela nunca havia concorrido a um cargo eletivo. Petulante ou não, e se por ser mulher ou por ser simplesmente competente, o fato é que agora temos uma mulher na presidência.

Espero que ela se saia bem, para benefício da nação. Agora, se ela pisar na bola, não quero nem ouvir as piadinhas maldosas e preconceituosas. Prefiro o equilíbrio de avaliar diferente: boa ou má gestora, em vez de boa ou má simplesmente por ser mulher. Embora outra parte de mim deseje que ela cale a boca de quem a julga incompetente só por ser mulher. Quem sabe assim o preconceito diminui mais um pouquinho. Afinal, quem ainda acredita que lugar de mulher é só no fogão?

Débora Carvalho
São Paulo, 20/12/2010

 

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