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Quarta-feira, 12/12/2001
Matrimônio à americana
Daniela Sandler

Acho curioso como certas comidas têm par. Queijo com goiabada, por exemplo – aliás, Romeu e Julieta. O apelido não poderia ser mais apropriado para indicar a natureza “matrimonial” das combinações alimentícias, e a felicidade amorosa que resulta quando a combinação encontra residência no palato certo.

Porque, claro, é tudo questão de gosto, e nada garante que o meu casamento ideal vá funcionar para você... A questão não é só de gosto pessoal, mas de cultura também. Está certo que algumas combinações são quase universais, ao menos no Ocidente: arroz e feijão, pão com manteiga, café-com-leite. Ao nosso paladar, esses pares parecem feitos um para o outro. Será sempre assim?

Eu de minha parte achava que sim, até vir morar nos Estados Unidos e descobrir um mundo de outros pares insuspeitados. Não que sejam ruins, muito pelo contrário. O que me intriga é a razão de certas uniões, o porquê de determinados ingredientes estarem sempre juntos.

Por exemplo, framboesa e chocolate branco. Essa é combinação clássica. Tão clássica que sua encarnação original, ao natural, foi perdida, e o casal habita agora o panteão dos alimentos processados: sorvete, iogurte, torta, pudim, barra de chocolate, barra de cereal. Não tenho nada contra, mas me pergunto: por que framboesa? Por que não cereja? Amora? Morango? E por que chocolate branco?

Se a gente pensar em arroz e feijão, há muitas respostas para questões similares. A combinação de carboidratos e ferro; o sabor neutro do arroz como pano-de-fundo para o gosto do feijão, e sua textura seca como base para absorver o caldo; fora as circunstâncias históricas, que variam conforme o lugar. O prato, porém, pode ser comido no Brasil inteiro, em Cuba, em New Orleans.

Gelatina e crème brulée

Tudo bem, há alguns casamentos mais evidentes em sua felicidade, mas nem por isso menos arbitrários. Falar em cookies, por exemplo, é falar automaticamente em um copo de leite. A associação é tão consagrada que lojas de produtos “gourmet” vendem seus cookies especiais junto com copos especiais (os copos têm uma vaquinha em relevo, para deixar claro seu propósito). Uma propaganda recente de uma marca de cookies mostra um sujeito mergulhando os tais num imenso jarro de leite (os cookies são grandes demais para o copo). Um comercial de Oreo, mais antigo, tinha um menininho que praticamente se afogava em leite, lutando contra o enorme galão plástico, para conseguir molhar seu biscoito. Bom, agora você já sabe de onde vem o sabor “cookies’n’cream” das barras de chocolate.

Concedo, porém, que há complementaridade de sabor, textura e umidade. Com boa vontade, penso até numa comparação – ostras com vinho branco. Não, não. Acho que a inspiração veio mais dos “biscotti”, aqueles biscoitos italianos bem duros e secos, feitos para mergulhar em bebidas – chá, café, chocolate. Sua versão perfeita, claro, sendo os biscotti de amêndoas chamados “cantuccini”, acompanhados de vin santo, um vinho de sobremesa (como Porto). (suspiro) É, cookies com leite estão a milhas de distância de cantuccini com vin santo.

Mas, como disse Julia Roberts a Cameron Diaz em O Casamento do Meu Melhor Amigo, nem sempre a gente quer comer crème brulée de sobremesa – na maior parte das vezes, a gente quer mesmo é gelatina. (Eu, hein? Eu não!) Já que estou aqui, por que não me deleitar com os casais norte-americanos?

Manteiga de amendoim e chocolate, naqueles bombons da embalagem cor-de-laranja. Falando em chocolate: chocolate-quente, óbvio!, ingerido com pequeninos marshmallows flutuando na xícara. Batatas assadas (baked potatos), de regra, vêm com sour cream e cebolinha verde. Cookies de macadâmia têm chips de chocolate branco (mentes mais liberais estão introduzindo uma versão com chocolate ao leite também). Já os cookies de aveia são sempre cheios de uva-passa.

Cranberries, as frutinhas vermelhas, parecem chamar obrigatoriamente a laranja, em bolos, muffins e biscoitos. Maçãs? Caramelo. Bagel? Cream-cheese. Chá verde? Mel. Ah, aquele intrigante habitante das vending machines, o biscoito de queijo recheado de manteiga de amendoim.

Diferenças conciliáveis

Todos esses casamentos me deixam um pouco dividida. Parte de mim festeja – meu estômago, provavelmente. Parte de mim critica, desconfiada. O problema não são as combinações em si, nem o fato de haver combinações consagradas – como já disse, há casais célebres em todas as nações... steak et frites, salsicha com chucrute, fish & chips...

O problema é que aqui tudo vira padrão. Sei que muita gente pensa nos Estados Unidos como símbolo da democracia – e não vou nem entrar nessa discussão agora –, mas a maioria se esquece de que o país é também símbolo da sociedade de massa. A individualidade – e a liberdade – têm limites numa sociedade industrializada, massificada e estandardizada.

Tudo, quase tudo, vem pronto, semi-pronto, fácil – e vira um carimbo mental. As combinações não são apenas pares clássicos. São lavagens-cerebrais do paladar, inculcadas por mães sem tempo, cantinas sem criatividade, merendas padronizadas, e finalmente pelos produtos industrializados. Iogurte, sorvete, barra de cereal, barra de chocolate, biscoito, tudo isso vem em white-chocolate raspberry, peanut butter chocolate, cherry vanilla, butter pecan e peaches’n’cream (eles adoram cream por aqui).

As palavras vão se fundindo em um nome só, contínuo, como se existisse, na natureza, uma tal coisa como whitechocolateraspberry, peaches’n’cream. Você acha que estou brincando? Pois um amigo americano me falava, outro dia, das delícias de crescer numa fazenda, colher a própria comida, comer fruta do pé. “Aqueles pêssegos, que doçura, a gente ia prá baixo da árvore com uma tigela de creme-de-leite e comia os pêssegos lá mesmo, banhados no creme...” Pêssegos, na árvore, já vêm com creme!... Imagina quando ele morder um pêssego “puro”!

Mas talvez eu esteja sendo parcial. Talvez eu veja a camisa-de-força desses pares de comida porque sou estrangeira. Talvez eu não enxergue o que há de forçado nas nossas próprias associações. Frango com farofa. Frango com catupiry. Côco e chocolate (será o prestígio a versão tupiniquim de cookies’n’cream?). Mate com leite, ou mate com pão-de-queijo. Ou será pão-de-queijo com café? Não, café é com sonho-de-valsa. Está vendo? Não sei se a gente é mesmo mais flexível, ou se é a tal diferença de ponto-de-vista.

E, no fim, se eles são felizes, por que desmanchar o casamento? Por que não celebrar as bodas, simplesmente? Com bolo branco e champagne, evidentemente...

Daniela Sandler
Rochester, 12/12/2001

 

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