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Segunda-feira, 7/2/2011
Convite ao 'por quê?'
Edson Vitoretti

Crítica da estética da mercadoria (Unesp, 1997) é um desses livros basilares, fundamentais para entendermos a realidade. Trata-se de um ensaio sobre as relações entre a estrutura do capitalismo na sua unidade fundamental, a mercadoria, e a unidade fundamental da estrutura da psique humana: o desejo.

Wolfgang Fritz Haug publicou esse ensaio de 209 páginas em 1971, mas esta resenha se baseia na edição de 1997, da editora da Unesp. Essa informação é importante porque, nessa edição, Haug faz vários comentários, num apêndice, sobre críticas que a primeira edição do livro recebeu em 1971. A obra é subdividida em quatro partes, afora posfácio e apêndice. Na primeira, Haug trata do conceito fundamental de estética da mercadoria, passando por outros como valor de troca, valor de uso, valorização e inovação estética. Na segunda, aborda a aparência e a abstração estética. Na terceira, o livro fica mais concreto e menos abstrato, pois o autor dá vários exemplos dos conceitos abordados, relatando fatos verídicos do mercado e de empresas, genealogia e evoluções dos mecanismos da compra e da venda; fala da estética da mercadoria sendo utilizada para moldar a sensibilidade humana, sobre a fetichização da juventude, e as interconexões disso tudo com a publicidade. Na quarta parte, o ensaio ganha ares mais conclusivos. O autor demonstra como a estética da mercadoria se insere estruturalmente no capitalismo, fala sobre as relações da estética da mercadoria e a classe trabalhadora, e a estetização da política no fascismo.

Haug começa discorrendo sobre os conceitos fundamentais relacionados à estética da mercadoria: o valor de troca e o valor de uso. Explica como a contradição entre valor de troca e valor de uso e a necessidade de equivalência entre os dois fenômenos fez surgir uma terceira dimensão de quantificação, que, aliás, se torna uma terceira mercadoria: o dinheiro.

Esclarecidos os conceitos de valor de troca e valor de uso, Haug passa então a esmiuçar o conceito que dá nome ao livro. A estética da mercadoria seria a manifestação sensível do seu valor de uso. É a objetivação da aparência na consumação do ato de compra.

O autor ressalta em várias partes do livro como a estetização da mercadoria faz dela um objeto fantasmagórico, uma vez que o consumidor, depois de adquiri-la, não se satisfaz com seu uso (essa palavra é fundamental no livro, porque, para Haug, não há "uso" da mercadoria, justamente porque sua estetização tem como finalidade dar aparência de uso, uma promessa de uso, a um objeto que não responderá a essa expectativa de uso), fazendo com ele sempre queira repetir o consumo. Esse motocontínuo de nunca se satisfazer e sempre voltar ao ato da compra seria um dos princípios e motivações da estetização da mercadoria.

Até aqui o leitor menos familiarizado com o tema (Haug diz no apêndice que o livro é mais bem absorvido por leitores que já leram O Capital, de Marx) se vê num redemoinho de abstrações, embora não obstrutivas ao entendimento. O abstracionismo (a terminologia econômica também contribui para esse abstracionismo; aliás, no apêndice, Haug comenta a gênese histórica dessa particularidade da terminologia econômica, inerente a ela) do livro gera interpretações psicanalíticas sobre as relações de troca.

A sensação que se tem é que há uma perda de identidade entre os atores desse teatro econômico. O consumidor vira vendedor inconsciente (transmite seu desejo para a mercadoria, que o devolve a ele estetizado na aparência); o dinheiro vira mercadoria; a mercadoria adquire atividade e fluidez, em vez de se contentar em ser um produto concreto e passivo. Enfim, há um fluxo de ida e volta, uma simbiose esquizofrênica nas relações do capital, tendo como fio condutor a estética. A abstração dessas relações salta aos olhos personificando as abstrações do funcionamento do capitalismo, reveladas pelo autor.

De fato, muitas das análises de Haug recaem sobre a estrutura do capitalismo. É abordado, por exemplo, o conceito de inovação estética, estratégia mercadológica que se impõe a toda mercadoria, especialmente no capitalismo monopolista e em situações em que as relações de produção obstaculizam as forças produtivas. A inovação estética seria a necessidade de uma mercadoria adquirir uma aparência nova de tempos em tempos, como pressuposto para sua melhor aceitação no mercado.

Nesse ponto, Haug chega a uma constatação assustadora. Por conta de sua função de instigar ao consumo, a inovação estética "modifica continuamente a espécie humana em sua organização sensível: em sua organização concreta e em sua vida material, como também no tocante à percepção, à estruturação e à satisfação das necessidades".

O autor reafirma em vários momentos essa modificação da sensibilidade humana nesse contato de estruturação simbiótica entre o ser humano e a mercadoria estetizada. Ele fala de padronização da sensualidade para conceituar o processo pelo qual o consumidor acaba tendo horror aos cheiros do próprio corpo, decorrido da degeneração que sua sensibilidade sofrera pela busca desenfreada ao consumo de cosméticos. Um desses momentos se dá quando Haug comenta as relações humanas entre sujeito e objeto no capitalismo: "estruturam a percepção, a sensibilidade e a capacidade de avaliação, padronizam a linguagem, as roupas, a autocompreensão, bem como as atitudes e até mesmo o corpo, mas sobretudo a relação com ele".

Nessa seara da busca pela beleza do corpo e dos processos de padronização no capitalismo, Haug ainda lança mão de argumentos e exemplos para falar sobre a fetichização da juventude, que seria, aliás, também uma das causas da inovação estética.

Realmente, o ensaio de Haug passeia muito pelo reino da aparência, outro fio condutor do livro, cuja abordagem, reveladora e impactante, explica a relação da mercadoria e a natureza humana. O uso das imagens na estetização da mercadoria se basearia no fenômeno da reflexão do desejo humano na aparência da mercadoria, como num espelho, mostrando as insatisfações do seu ser. Esse espelhamento é fundamental para constituir a estética da mercadoria, que não existiria se não houvesse essa reflexão. Diz Haug: "A aparência oferece-se como se anunciasse a satisfação; ela descobre alguém, lê os desejos em seus olhos e mostra-os na superfície da mercadoria". O homem, atraído pela sedução da imagem na mercadoria do que nele é insuficiente ou insatisfeito, sucumbe-se à compra instintivamente.

Essa análise da alquimia entre imagem da mercadoria e o desejo humano é uma grande contribuição do livro para o pensamento socioeconômico e até filosófico e antropológico. O peso da subjetividade corporificando as relações do capital demonstra como a sensibilidade humana é usada para ofuscar a razão. Somos feitos de desejos e não temos acesso à elaboração racional desses desejos. É nessa ausência de percepção de si que o capital age nas relações de troca.

Em várias partes do ensaio, Haug reitera que a matéria-prima de toda mercadoria é o desejo humano, pois sem ele não é possível uma eficaz produção da estética da mercadoria, o seu valor de uso, e a consequente relação de troca. O problema do desejo humano não é abordagem nova no pensamento filosófico. Na Antiguidade, Epicuro mapeou os desejos como naturais, necessários e inúteis, valorizando os dois primeiros e sugerindo um esforço para a eliminação dos últimos. O que Haug fez de inovador foi sistematizar as relações do desejo na estrutura do capitalismo, que, nesse contexto, é a expressão da nossa ignorância e insuficiências profundas.

Na última parte do livro, Haug se detém mais em análises sobre as implicações da estetização da política. Fala como ela foi usada no fascismo, fazendo com que as massas se vissem estetizadas no palco político, hipnotizadas por sua própria imagem. Esse hipnotismo serviria para afastar das massas a consciência de suas reais necessidades e sua exploração pela classe dominante. O fascismo, segundo Haug, sabotou o movimento operário mediante a fascinação estética, separando o movimento de sua expressão. As massas operárias se viam nas representações estéticas do fascismo, se contentando com o reflexo de sua imagem na cena política, quando na verdade abortava-se dissimuladamente a possibilidade de realização de suas reivindicações. Ou seja, a satisfação pela imagem substituindo a ação concreta.

O autor salienta que a estetização não está apenas na política, mas na sociedade burguesa como um todo. Ele ressalta que faz parte da sociedade burguesa gerar constantemente necessidades de legitimação dos dominantes e necessidades nos dominados. Nessa análise sobre a relação entre dominantes e dominados e como a estetização da política nela se insere, Haug resume a corresponsabilidade das massas por sua dominação numa frase simples que subjaz uma verdade lancinante: "Sem o ópio do povo, não haveria o ópio para o povo". Mais adiante, já no apêndice, numa espécie de conclusão acerca da relação dominantes/dominados no capitalismo, Haug reitera a importância dessa questão do ópio do povo. Ele diz que o capitalismo estabilizou-se democraticamente na esfera política numa massa básica composta por classes não específicas, ressaltando que se o capitalismo tivesse tentado se sustentar apenas na burguesia, já teria sucumbido há muito tempo. O cidadão passivo do Estado, segundo Haug, é exatamente aquele "cujos interesses conscientes [grifo meu] privatizaram-se inteira ou amplamente, recolhendo-se na esfera do consumo".

Crítica da estética da mercadoria é um livro para ser lido, relido e absorvido, consciente e ― talvez principalmente ― inconscientemente. Trata-se de um diagnóstico de uma disfunção da percepção humana, ou de um desvirtuamento da percepção humana canalizado para sustentar os fundamentos de um sistema econômico que subjuga e explora a maioria da humanidade de forma oculta, sub-reptícia.

É um livro pesado e leve ao mesmo tempo. Leve porque ilumina, esclarece a realidade. E pesado justamente porque nos faz ver as duras verdades dos alicerces de realidades: da realidade do ser humano e da estrutura funcional do capitalismo. Esse abrir de cortinas à realidade é uma compensação do livro pelo que ele tem de abstração. Justamente porque Haug mostra como a realidade é composta de coisas invisíveis, abstratas, imateriais. O capitalismo tem muito de imaterial, porque seu funcionamento depende do que está dentro da gente, dos nossos desejos, dos nossos instintos, da nossa percepção.

Essa revelação do componente imaterial do capitalismo é uma das sacadas fantásticas do livro, porque mercadoria e produção são normalmente conceitos vinculados à dimensão da concretude, do material. Daí a riqueza do livro em mostrar como coisas concretas são determinadas por coisas abstratas. A frase de Shakespeare, em Hamlet, "Há mais coisas entre o Céu e a Terra do que supõe nossa vã filosofia", poderia ser a epígrafe do ensaio.

No apêndice, Haug recebe com cautela análises psicanalíticas sobre seu livro. Prefere insistir que o cerne da crítica da estética da mercadoria é sua derivação econômica e análise funcional. Ele diz que uma das vantagens que a derivação econômica coloca no campo da estética da mercadoria é o entendimento da contraditoriedade dos fenômenos. Ou seja, aquilo que nos espanta ao lermos Crítica da estética da mercadoria.

Entretanto, Haug tem de admitir sua obra é perpassada por induções ao inconsciente. E, num livro que revela contradições, a sua leitura realiza mais uma. Apesar de tantas induções ao inconsciente, o livro conclama, com o grito sóbrio dos argumentos, ao uso do consciente. De fato, quem tem um mínimo de consciência não deve passar incólume à leitura do ensaio. Provavelmente, muita gente, a cada compra, a cada incursão ao mundo da mercadoria, sentirá um peso terrível ― quiçá revolucionário ― sobre os ombros que se traduzirá no questionamento: "Eu realmente preciso dessa mercadoria? Por quê?".

Nota do Editor
Edson Vitoretti é estudante de jornalismo da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Edson Vitoretti
Londrina, 7/2/2011

 

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