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Quinta-feira, 17/2/2011
Triste fim de meu cupcake
Elisa Andrade Buzzo


ilustra: Luli Penna

Em todos os shoppings centers, lá está a loja colorida, infantil. Mais pareceria um espaço para deixar as crianças brincando enquanto os pais podem fazer compras tranquilamente (então, para que levar as crianças ao shopping?). Falo, por enquanto, das lojas de frozen yogurt, aquele iogurte em formato cocolino. Seguindo o estilo de apresentação visual vibrante e impecável estão as brigaderias, lojas especializadas em "brigadeiros gourmet", que cobram por volta de três reais por uma massa doce enrolada em castanhas trituradas, raspas de frutas, o típico granulado etc. Deve haver alguma boa explicação naquela fila e na satisfação de mocinhas magérrimas em devorar um pote de iogurte congelado, ou nas adolescentes sedentas em tocar e morder os docinhos decorados.

Depois da decepção da falta de gosto do frozen yogurt, chegou a hora de experimentar os tais de cupcakes, os típicos muffins anglo-americanos com cobertura de diversos tipos. Dessa vez, no entanto, o pecado foi pelo excesso. É irritante, pois é como se fosse uma blasfêmia dizer que não se gosta de cupcake. Como ficar de fora desta moda fofa?

O mundo era ingênuo no final da década de 1980, quando chegaram às prateleiras dos supermercados o Moça Fiesta nas versões em lata brigadeiro e beijinho. As novidades se resumiam a esse tipo de coisa. Hoje, a rebimboca da parafuseta está à venda em mil versões, inclusive diet e light. E se agora até nesses docinhos tipicamente brasileiros podemos ver em seu topo um incólume confeito de M&M'S, como se fosse a aceitação da primazia cultural norte-americana? A exuberância dos cupcakes está bem acomodada na era da imagem.

Na internet vejo um álbum dos bolinhos "coloridos e saborosos", um mais bonito que o outro, mas não consigo sentir exatamente aquela sensação de água na boca, antes uma veneração (que nada tem a ver com apetência) diante da profusão visual daqueles arranjos. Talvez seja isto que surte admiração: a beleza de um arranjo de flores, a palavra "arranjo" numa das acepções do Houaiss, "disposição ou colocação com propósito estético através da harmonia dos elementos".

Os jornais induzem ao consumo de cupcakes especiais, as opções salgadas, temáticas de Natal etc. Tudo bem, decerto deve haver os melhores e os piores. Só que minha experiência foi como passar meses lendo na internet que Lady Gaga revolucionou o pop, e, ao ouvi-la, perceber que tudo aquilo não passava de um engodo bem construído, música sem gosto. Demorei meses, mas precisava experimentá-lo.

Primeira incursão no mundo dos cupcakes (pelo shopping): tento fazer uso dos meus conhecimentos de culinária francesa. Avisto uma pequena fruta azul-arroxeada no topo de um creme lilás (dá vontade de comer algo lilás?). "Ahá, mirtilo!" Aquele mesmo, das pequenas tortas francesas de mirtille. Ao tentar decifrar os inúmeros bolinhos dispostos na vitrine, confirmo com a atendente, "Esse aqui é de mirtilo, né?", ao que ela responde com uma ponta de indisposição "NÃO, é blueberry". "É, mas é mirtilo em português...", respondo, descrente do mundo. "É mais conhecido como blueberry".

A conversa continuou, eu queria saber de sua boca que gosto tinha aquela montanha lilás. "Tem gosto de quê, isto?", pergunta pretensiosa e indiscreta, pois se o cupcake era de mirtilo, ele só poderia ter gosto ― em algum lugar, seja no recheio ou na cobertura ― de mirtilo. Mas não, a história iria ainda mais longe. "Parece danoninho". Incrédula, entre inúmeras outras opções, escolhi aquele mesmo.

Repentinamente, me vi em meio à praça de alimentação lotada, na hora do almoço, com aquela escultura glaceada em mãos. Como comer aquilo? Nem mesmo garfo e faca dariam conta, apenas destruiriam aquela obra de arte em miniatura, prestes a desmoronar. Meus amigos dão apoio moral, sentenciam "é só morder". Era a primeira vez que eu necessitava de encorajamento para comer um doce. O que eu faço, inicio lambendo a montanha de gordura? Achei nojento e então resolvi mordê-lo pela massa da parte de baixo, mantendo o mínimo de contato possível. Deparo-me com o recheio gosmento. Deve haver uma esperança nas garotas de Sex and the city de que o beijo no sapo-cupcake renda um encontro com um príncipe perfeito.

Segunda incursão no mundo dos cupcakes (pelo bairro): afinal, vez ou outra é saudável caminhar ao ar livre, respirar um pouco de ar puro, sair do ambiente fechado dos shoppings centers. Encontro na rua uma escultura gigante de cupcake em frente a uma "cupcaqueria". São uma daquelas casinhas deformadas por constantes reformas que encontramos ainda salvas do desabamento. O café se rende aos pequenos detalhes que fazem dele um ambiente parecido com uma casa de bonecas. Na vitrine, uma bela profusão de cores me confunde. Qual sabor escolher? Pensei logo no cupcake de brigadeiro ― este não falharia ao meu paladar brasileiro. "Oi, quero este de brigadeiro com o Mickey em cima". A moça de avental responde com cara de dor de barriga, "Te aconselho a não escolher esse". Fico intrigada, mas nos detemos no jogo de olhares, a dona do estabelecimento estava presente. Poderia ter sido um blefe. O que quereria ela, afinal, comer todos os cupcakes de brigadeiro sozinha? Acato e pergunto sobre o cupcake de tiramisù, cujo mascarpone há tempos não dá as caras nem em restaurantes chiques. "É uma delícia!". Seria em um cupcake que haveria o verdadeiro queijo?

É nessas horas que me lembro das massas doces e singelas que acompanham a vida. Bolos caseiros, roscas açucaradas de padaria, sonhos, rabanadas, o Bebezinho! A receita industrializada brasileira do muffin, a base do cupcake, que já acompanhou gerações de crianças no Brasil. Até ele se rendeu ao cupcake-mãe, ainda que de modo sub-reptício, pois antigamente havia a versão "pura" do bolo, seguida da opção recheio de baunilha. Agora, restam nos supermercados as versões um tanto enjoativas recheadas de morango, laranja e chocolate.

Pois os cupcakes nada parecem ter a ver com a cultura brasileira. De todo modo, eles já foram vistos nas padarias, o que demonstra que sua aceitação de certo modo começou. O tempo dirá se os bolinhos vão encontrar espaço cativo, quais matizes tropicalientes vão disfarçá-los por aqui. A torta de morango, a bomba de chocolate, os petit-fours, não os encontramos todos em qualquer canto da cidade? A forte influência da confeitaria francesa remonta ao início do século XIX, e de elitista passou em parte a popular; cópia malfeita ou recriação bem-sucedida ao paladar nacional.

Por fim, acabo por me convencer de que devo confiar no paladar da gata Latifa. Ela adora um bem-casado, um bolo de laranja molhadinho, um pão-de-ló bem feito. Sobe na mesa, implora quando adivinha algo de sutil e doce miolo. Faz das tripas coração para abocanhar um bocadinho que seja. Quem não quer viver no bem-bom? E cupcake, convenhamos, não parece comida de gente de carne e osso, por mais que Carry Bradshaw queira me convencer disso.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 17/2/2011

 

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