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Quarta-feira, 23/2/2011
O beatle George
Luiz Rebinski Junior


LIANA TIMM© (http://timm.art.br/)

Não é preciso ser nenhum aficionado pelo quarteto de Liverpool para deduzir que John Lennon e Paul McCartney foram os gênios que levaram os Beatles à posição de maior banda de rock que já pisou ― e provavelmente pisará ― neste planeta. Talvez genial não seja um adjetivo definitivo para a dupla, mas transitório. Em suas carreiras solo, nem Paul nem John fizeram álbuns à altura dos melhores momentos dos Beatles ― ainda que tenham construído carreiras exuberantes, mas infinitamente menores quando em perspectiva à história musical do grupo. Coube ao coadjuvante da banda esse papel.

George Harrison fez o mais fantástico ― e genial ― álbum-solo gravado por um Beatle. All things must pass é daqueles álbuns apaixonantes, que não se consegue largar até que a música comece a encher o saco, não pelo conteúdo, claro, mas pela exaustiva repetição. Todo mundo conhece a história de monopólio da dupla Lennon-McCartney sobre as composições e principais decisões do grupo. O que alijava os outros dois integrantes de qualquer participação mais incisiva na banda, tendo como missão nada além do que executar o que a dupla principal criava. Ainda assim, All things must pass não é uma superação de um músico mediano que passou quase uma década burilando suas músicas enquanto apenas executava pérolas criadas por mentes mais geniais que a sua.

Mesmo com a presença castradora da dupla Lennon-McCartney, Harrison emplacou alguns dos sons mais interessantes ― e maduros musicalmente ― do repertório dos Beatles, o que inclui "Love you too", de Revolver, "Within you without you", de Sgt. Pepper's, e "While my guitar gently weeps", do White Álbum. Três canções fantásticas, que enriqueceram musicalmente a banda. Isso sem falar de hits poderosos como "Here comes the Sun", "I need you" e "Something", a música mais regravada dos Beatles depois de "Yesterday". O que quer dizer que All thing must pass não foi o que se pode chamar de golpe de sorte. Em 1970, o ano da separação dos Beatles, os quatro integrantes da banda lançaram discos separadamente. Paul compôs uma obra-prima ― "Maybe i'm amazed" ― que rivaliza com suas composições de maior sucesso, mas, no geral, seu disco de estreia não é tão bom. Lennon fez Plastic Ono band, um disco amargo com bons momentos ("God", em que Lennon diz: "eu não acredito nos Beatles, só acredito em mim", e "Mother", mais uma canção que tentava exorcizar fantasmas do passado). E Ringo... Bem, Ringo lançou um álbum (ou melhor, dois) inexpressivo, com diversas regravações.

Na faixa-título de All thing must pass, George canta que "tudo deve passar/ nada na vida pode durar pra sempre/ então, devo seguir meu caminho/ e encarar um novo dia". Depois que os Beatles se separaram, tudo que seus ex-integrantes diziam era interpretado como uma resposta velada às antigas rusgas. Isso pode até fazer algum sentido no caso de Harrison, mas All things must pass é muito mais um grito de independência do que dedo em riste. Harrison finalmente estava livre para colocar suas canções à prova não mais dos companheiros de banda, mas do público, e, principalmente, de si próprio.

O que poderia ser melhor para um jovem oriundo do subúrbio de Liverpool (uma cidade portuária e à época decadente) do que ser um Beatle na fervilhante década de 1960? No final da década em que os Beatles emergiram para o sucesso, Harrison queria qualquer coisa, menos continuar sendo um besourinho, ainda que o cabelo e a barba crescidas já tivessem expulsado a ingenuidade dos anos de formação. Harrison e Lennon foram os responsáveis pela interrupção dos shows dos Beatles a partir de 1966. Estavam de saco cheio da beatlemania e acreditavam que os shows não contribuíam em nada para o aperfeiçoamento deles como músicos. Uma meia verdade que ajudava a disfarçar o incômodo real: os rapazes não se suportavam mais. "Não conseguia me relacionar com mais ninguém. Nem mesmo [...] com meus amigos, minha mulher, ninguém!", disse George, em 1983, a Geoffrey Giuliano, um dos muitos biógrafos dos Beatles.

Ainda assim, com um clima pouco amistoso, a banda teve fôlego para fazer álbuns genias, como Sgt. Pepper's e o famoso White Álbum, nos anos que restaram até McCartney se adiantar a Lennon, que foi persuadido pelo colega a não revelar sua saída do grupo antes do lançamento de Let It be, e avisar ao mundo que estava deixando a banda ― uma mágoa que Lennon levou para o caixão.

Por mais traumático que tenha sido para milhares de fãs, o fim dos Beatles era a carta de alforria que George e John tanto sonhavam. É incrível pensar como uma coisa tão fantástica ― a existência dos Beatles ― se tornou um fardo para aqueles que mais usufruíram de suas benesses. Mas, mais incrível ainda, é acreditar que os Beatles viviam em um permanente estado de vazio existencial, principalmente John e George. E acabar com a banda talvez tenha sido a melhor maneira de encontrar algo que preenchesse esse vazio. Daí os Beatles saírem em voo solo fazendo discos e mais discos.

All things must pass, nesse sentido, parece ter tido o efeito de uma superdose de Prozac em Harrison. O disco é todo sentimento. Um misto de melancolia e fé no futuro ronda o álbum todo, especialmente em músicas como "Isn't it a pity?", "Let it down", "Run of the Mill" e "Beware of darkness", canções que, isoladas, fariam de qualquer disco um clássico atemporal. Mas o álbum triplo de Harrison (o primeiro da história do rock), ainda tinha a maravilhosa faixa-título, "All things must pass", capaz de emocionar um ogro, e o insuperável cover de "If not for you", de Bob Dylan. Além de canções mais ensolaradas, como a evocação do blues em "Plug me in" e o tributo à fé oriental em "My sweet lord", a música que, de alguma forma, eclipsou o disco todo. A canção, sem dúvida, é linda, mas, executada de forma isolada e repetitiva, pode dar a falsa impressão de que All thing must pass é uma compilação de mantras Hare Krishna. Impressão que é logo dissipada nos primeiros acordes de "Wah-Wah", o rockão folk orquestrado que vem logo depois de "My sweet lord".

Em uma entrevista para o lançamento do projeto The Beatles Anthology, em 1995, ao ser indagado sobre sua carreira solo, Harrison diz ao entrevistador, com um sorriso irônico no rosto, que nunca teve uma carreira fora dos Beatles, que não promovia seus álbuns, não cantava em programas de rádio ou tevê e dificilmente excursionava. Harrison nunca conseguiu fazer um álbum que superasse All thing must pass (e poderia?), mas criou álbuns fantásticos nos anos posteriores, como Dark horse (que daria nome à sua própria gravadora) e Living in the material world. Além de ter participado dos dois discos do Traveling Wilburys no final dos anos 1980 (a banda que formou com Bob Dylan, Roy Orbison e Tom Petty).

Ainda assim, Harrison parece nunca ter se recuperado da experiência de ter participado dos Beatles. Sua reclusão em Friar Park, onde sofreu um atentado de um maluco esquizofrênico, era uma atitude compatível à sua personalidade, mas, pelo que se lê nas entrevistas que Harrison concedeu depois da separação dos Beatles, ter participado da maior banda de rock de todos os tempos não seria uma escolha tão fácil caso pudesse ter traçado seu destino.

Nota do autor
Este texto foi inspirado pela leitura de "O mistério em George Harrison", presente no livro Ponto Final, a imperdível coletânea de ensaios sobre os anos 1960, do jornalista Mikal Gilmore.

Luiz Rebinski Junior
Curitiba, 23/2/2011

 

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