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Sexta-feira, 29/4/2011
Ler, escrever e fazer contas, só que hoje
Ana Elisa Ribeiro

Faço um esforço grande e não me lembro das primeiras lições de leitura. Não tenho mais ideia de como foi meu trajeto em direção a ela (com compreensão). Sequer consigo me lembrar das aulas de letrinhas, sílabas e outras dificuldades. Nem posso dizer que tenham sido fáceis ou frustrantes, já que nem disso guardei memória. Se é assim, pode ser sinal de que não deixou cicatriz. Se tivesse sido sofrido, eu saberia, ao menos vagamente.

Lembro-me com vaguidão do nome da professora. Era Fátima. Lembro melhor da compleição do corpo do que do rosto, que era redondo. A mulher não me parecia dura, nem carrasca. Deve ter dado bons ensinamentos de caligrafia, embora eu os tivesse esquecido em seguida.

Naquela época (terrível esta expressão), aprendia-se a ler em cartilhas. A minha se chamava Acorda, dorminhoca, e só disso é que me lembro. Talvez da capa, meio laranja. E mais nada.

Aprendia-se a ler no pré-primário ou prezinho, como chamam até hoje. Eram oito os anos de ensino fundamental e a alfabetização no pré era privilégio. Estudávamos em jardins privados e tínhamos acesso ao mundo das letras, pelo menos ali, na portinha da entrada. Daí a entrar e passear, são outros quinhentos. Nadar de braçada, então... só pagando para ver.

A "tia" ensinou muitas coisas para a garotada. E me ensinou a ler. Não tenho qualquer memória das lições. Só me lembro de começar a ler outdoors e de pedir ao meu pai para dirigir mais devagar.

Saber decifrar as letras, as sílabas ou os textinhos, no entanto, não era tudo e não significava, de forma alguma, dominar a escrita. Esta foi galgada a passos curtos, letra a letra, em cadernos de pautas diferenciadas. Desenhar o A, o B, o C e o difícil O. Alcançar linhas de cima e de baixo. Não espelhar letras e números. Treinamento árduo. Consolidar uma caligrafia própria, a "minha letra", reconhecível pelos amigos, pelos pais, por mim mesma e pela perícia.

Ter letra, ter estilo, ter tom. Naquela era, completamente tomada pela cultura escrita impressa, o máximo do arranjo profissional era escrever a máquina, com letra "de imprensa".

Da letra manuscrita fartamente treinada, em todos os níveis escolares, até a primeira máquina passaram-se décadas. Ter uma Olivetti ou qualquer outra máquina para datilografar era coisa de quem se metia muito a escrever. Ninguém tinha uma dessas à toa. E minha primeira experiência foi com uma Hermes Baby, modelo portátil (com mala de mão), laranja, curiosamente, com letras que imitavam o manuscrito. Só mais tarde veio a portátil com letra de imprensa, em que eu adorava usar fita de duas cores. Ter uma máquina dessas em cima da mesa significava, de alguma forma, uma proximidade qualquer, íntima, com a escrita.

Mas eis que o computador chega perto (nos anos 1990, junto com o 486 e o Windows) e se mostra um jeito novo de escrever. Apesar das operações para ligar, abrir, arquivar e das novas mediações, todas metafóricas e virtuais, o PC tinha seu charme. A sedução da formatação fácil, quase profissional, transformava qualquer texto em uma obra de gráfico. A parte chata era dispensada, como separar sílabas e calcular, no olho, onde a linha deveria acabar para garantir o alinhamento da mancha. Mais sedutor ainda era poder desfazer, apagar, desistir, recortar e colar sem ter de escrever tudo de novo. Impressionante era só imprimir quando o texto chegava a bom termo (ainda que escapassem uns desacertos). Sem papel amassado e sem lixeira cheia, o escritório parecia sempre pouco sofrido.

A "tia" Fátima nem sonhava em nos ensinar a escrever no computador. Ela se esforçava por nos ensinar a fazer letras redondas, legíveis e a entender como separar palavras. E nós percebíamos que a língua e os textos serviam para fazer muitas coisas na vida.

Como se alfabetiza alguém hoje? Por que caminhos segue uma criança nascida na década dos tablets? Fôssemos nós nascidos dentro de computadores, certamente veríamos neles uma paisagem como qualquer outra. Isso precisa ficar claro e óbvio. Não se trata de que nasçam hoje seres mais espertos e inteligentes. Mas, de fato, nascem seres que têm contato com artefatos dos quais nos apropriamos.

Eu, um ser da década de 1970, nasci vendo TV e joguei videogame muito jovem. Tive alguma notícia do computador quando já era adolescente, mas ele nos parecia uma máquina lendária, intocável, para engenheiros trancafiados em laboratórios secretos. E fomos nos aproximando dessas máquinas (e elas de nós) muito lentamente, de acordo com as necessidades que o trabalho e a escola nos impunham.

As crianças que nascem hoje podem conhecer, bem cedo, as funções de um notebook, de um telefone celular ou de um tablet, normalizando, portanto, sua interação com esses objetos. Não significa, no entanto, que seus pais sejam leitores e escritores contumazes, mas pode ser que sim.

Em trabalhos científicos e mesmo na experiência empírica, é possível observar a beleza das crianças aprendendo a ler e a escrever neste mundo de mais possibilidades (de forma alguma quero dizer que sejam necessariamente melhores). Ao que parece, é bastante precoce aprender as letras no teclado e digitá-las na metáfora da folha que surge na tela. Aprender a deletar surte efeito curioso quando a criança percebe sua dificuldade de apagar em folhas de papel, substância onde as marcas ficam por baixo das outras, o palimpsesto, o gesto de ir e vir da escritura que tem genética.

Crianças gostam de digitar, acham gostoso ver letras bonitas na tela, ficam felizes por terem apenas o trabalho de apertar um botão para ter como recompensa uma letra inteirinha. Aos 5 ou 6 anos, traçar um A ou um O não é brincadeira. Por outro lado, é impossível dispensar o aprendizado da própria letra, do desenho das palavras, porque há situações cotidianas em que o texto precisa existir analogicamente.

Crianças aprendem letras de "imprensa" na tela, lidando com Times New Roman ou com Arial. Encantam-se com tipos mais divertidos e aprendem cedo a formatar. Essas operações tão múltiplas na linguagem, essa verdadeira educação visual para o texto, no entanto, não dispensa a consolidação de um jeito próprio de escrever, de uma letra, uma espécie de identidade.

Lá vai o garoto aprendendo o próprio nome, "fazendo a ficha", descobrindo suas vogais e consoantes, alinhando ao seu os nomes da mãe, do pai, dos avós. Lá vai a menina trocando as letras, refazendo a linha, pensando em como resolver problemas com acentos e nasais. E lá vão eles se indispondo com o computador ou com o lápis. O lápis, dizem eles, é mais rápido. Com ele, é só riscar um traço no papel e pronto. No computador, preciso catar as letras, já que não sou ágil em digitar.

De qualquer desses cenários decorre que é preciso aprender que o texto escrito (e lido) tem poder, função, regras, parâmetros, serventias, segredos. Independentemente da ferramenta usada, escrever bem, por exemplo, é um desafio infinito, que a muitos custa uma vida inteira (e que a maioria abandona bem cedo).

A quantidade dos modos de ler e escrever aumentou significativamente nas últimas décadas. A cultura escrita abriu espaço para diversas tecnologias e as pessoas, a intervalos cada vez menores, vão se apropriando e se seduzindo por esses modos de fazer. Não se engane, no entanto, quem pensa que é a ferramenta que faz o ferreiro. É preciso mais do que caneta ou iPad para ser escritor ou leitor, nas melhores acepções dos termos.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 29/4/2011

 

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