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Quinta-feira, 21/4/2011
Textos movediços
Carla Ceres

Vou te contar uma piada: Um cowboy e seu cavalo entram num bar. O cavalo pede um uísque e o cowboy pede um copo de leite. Espantado, o barman comenta: "Que estranho! Cavalo bebendo uísque e cowboy tomando leite!" O cavalo responde: "Eu posso beber à vontade. É ele que está dirigindo."

Quando nos contam uma piada, podemos gostar ou não, por uma série de motivos. Gostamos porque foi bem contada, porque surpreendeu, porque se refere a algo especialmente significativo para nós... Deixamos de gostar porque contaram mal, porque adivinhamos o final, porque nos ofendeu...

Dizem que ter senso de humor é sinal de inteligência. Nem sempre. Há bobos alegres que riem de qualquer coisa a ponto de tornar-se inconvenientes. No outro extremo, algumas pessoas têm especial dificuldade para entender piadas. Em geral, parecem estúpidas ou ranzinzas. Desconfio, no entanto, que exista mais um possível motivo: a inabilidade para interagir com o texto.

Todo texto, seja escrito, narrado ou encenado, exige a participação do leitor/espectador para completar-se. O texto propõe uma viagem. Ao leitor cabe embarcar. Se alguém nos diz que vai nos contar uma piada, ficamos preparados para aceitar afirmações inverossímeis como se fossem verdadeiras. Tudo bem, cavalos não pedem uísque em bares, mas, como é uma piada, aceitamos essa informação e esperamos o desfecho, tentando adivinhá-lo. O texto é nosso guia. Ele nos conduz. Nós o acompanhamos. O bom texto é desafiador, sem ser indecifrável. O leitor experiente aceita as verdades do texto e as acompanha passo a passo.

Quem não entende piadas também costuma ter problemas com textos relacionados à fantasia. Se gostar de um filme em que aparecem fantasmas, é porque acredita que eles existem no mundo real. Um dos sujeitos mais sem senso de humor que conheci estranhava que seus amigos se assustassem com o filme Sexta-Feira 13, mas morria de medo de O Exorcista. Seu comentário era: "Eu não consigo sentir medo do que não existe. O Jason não existe, mas o demônio existe sim." Em outras palavras, ele não conseguia embarcar na ficção.

É na infância que aprendemos, gradualmente, a separar fantasia de realidade. É também nessa fase que contos fantásticos nos ensinam a suspender voluntariamente a descrença para acompanhar uma história interessante. Adultos que só se interessam por documentários e não-ficção talvez não tenham praticado a suspensão da descrença o suficiente quando crianças.

Suspensão da descrença é uma expressão bem conhecida entre estudantes de literatura, mas deveria ser explicada aos estudantes de primeiro grau. Só assim formaríamos adultos capazes de compreender textos complexos. Um texto simples, por mais fantasioso que seja, estabelece claramente quais são as leis que regem seu universo. Podemos confiar nesse texto. Seus personagens são coerentes e as dúvidas se resolvem no fim.

Nos textos complexos, precisamos confiar desconfiando e seus conflitos talvez jamais se esclareçam. Dom Casmurro é um bom exemplo. O leitor despreparado reduz o romance a uma questão típica de telenovela: traiu ou não traiu? Ainda insatisfeito com a dúvida, escolhe a alternativa mais provável de acordo com seus conhecimentos e experiência de vida. Jamais lhe ocorreria duvidar da imparcialidade do narrador, questionar seus preconceitos e motivações inconscientes.

Por falar em inconsciente, o que acontece quando o texto acompanha a história de um personagem oscilante entre realidade e alucinação? Em geral, o leitor/espectador se livra da incerteza, escolhendo em que acreditar mesmo sem motivos suficientes para isso. A maioria dos espectadores de Cisne Negro, por exemplo, acredita até o fim que a mãe da bailarina Nina Sayers é terrível com a filha. Poucos levam em conta que a moça é doente mental e que a mãe nos é apresentada do modo como a filha a vê. Sem dúvida, é mais fácil recorrer ao batido tema da bruxa má perseguindo a princesinha. Mais fácil do que admitir que aquela mulher sofrida talvez esteja apenas tentando proteger a filha de uma doença que poderia levá-la à morte.

Textos complexos podem ser interpretados de várias formas, de acordo com a experiência do leitor. Porém a leitura também depende da época. A Volta do Parafuso, de Henry James, foi lido por muito tempo, apenas como a história de uma jovem governanta que vai trabalhar em uma casa mal assombrada. Levou décadas para os leitores desconfiarem de que a moça talvez sofresse de alucinações. Hoje em dia, causa espanto que alguém leve a sério a interpretação sobrenatural para os acontecimentos do livro. Por essas e outras, podemos concluir que os textos também nunca sabem se podem confiar nos leitores.

Nota do Editor
Carla Ceres mantém o blog Algo além dos Livros. http://carlaceres.blogspot.com/

Carla Ceres
Piracicaba, 21/4/2011

 

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