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Quarta-feira, 8/6/2011
Maurice
Guilherme Pontes Coelho


O primeiro beijo gay da tevê brasileira. Isto foi uma notícia que li em algum portal noticioso. O beijo seria encenado pelas atrizes Gisele Tigre e Luciana Vendramini para alguma novela do SBT. Eu, que só ligo a tevê para ver filmes infantis e esportes de combate, achei a notícia toda curiosa. Não sabia que o SBT produzia novelas. Nem que Vendramini e Tigre (minha conterrânea) estivessem na ativa. Nem que este seria "o primeiro beijo gay da tevê brasileira".

Lembro que houve uma novela global, dessas ambientadas na imensidão territorial do Leblon, que dispunha de um casal gay no elenco. Gay lésbico, é claro. Eram as atrizes Paula Picarelli e Alinne Moraes. Pois as personagens delas não se beijaram naquela novela? Pelo visto, não. Ainda haverá um beijo gay em rede nacional. O mais curioso é que este futuro beijo gay feminino é a notícia. Uma coisa que eu supunha ser, digamos, normal (não diria corriqueira) no mundo mainstream.

Não bastasse o ineditismo, o beijo será dramatizado por duas atrizes belíssimas, que habitam as fantasias de muitos homens (e lésbicas, suponho) Brasil afora. Ou seja, um beijo gay entre personagens que se assemelhassem às atrizes Márcia Cabrita e Claudia Ximenes está fora de questão; entre personagens masculinos, nunca. (Recentemente, em dezembro de 2010, um beijo entre os personagens dos atores Hugo Leão e Fabio Enriquez, para série global Clandestinos, foi cortado na edição final.) Picarelli, Moraes, Vendramini, Tigre - só esse tipo de mulheres tem representado o namoro gay na tevê aberta porque seria mais aceitável, já que são símbolos sexuais do universo heterossexual? Nós homens gostamos muito de ver duas mulheres em ação.

Eu, muito ignorante no meu mundo recluso dos livros e da tevê a cabo, não sabia que o mainstream ainda se digladiava com questões tão medievas como uma bitoquinha lésbica. O que isso tem de mais, hein?

Infelizmente, isso tem sido demais. O discurso bolsonarizante é real, não se limita a um ou outro retrógrado idiota. Para muitos, gays são mais alienígenas que marcianos, mais criminosos que assassinos.

A notícia do beijo gay, somada às vociferações do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) e seus apoiadores, me fez pensar em Maurice, livro de E.M.Forster.

Maurice (Globo, 2006, 258 págs., tradução de Marcelo Pen) é a história de um homem insípido, anódino, mediano. Maurice Christopher Hall foi criado com um razoável conforto material. A família tinha com o que viver, um patrimônio satisfatório passado por duas, no máximo três, gerações. Além disso, seu pai, quando morrera, deixara um algo a mais para ser somado à modesta riqueza dos Hall, administrada pela mãe, enquanto Maurice não se tornasse o adulto senhor Hall, como o pai. Maurice tinha duas irmãs, com as quais não se dava bem. Quer dizer, se não era apaixonado por elas, também não nutria nada negativo em demasia nem por uma nem por outra. Era uma relação assim, mais ou menos, bem mesquinha, e recíproca.

Ele frequentou escolas assim, nem insignificantes, nem insignes. Ele mesmo era bom aluno, o suficiente para não ser notado. Não demandava a atenção dos professores por ser péssimo, nem ganhava deles os aplausos por ser extraordinário, tanto em notas quanto em comportamento. Ele era notado pelos colegas como aquele a quem eles conhecem e de quem sabem o nome, nome que nunca se lembram de imediato. Quanto à aparência, Maurice não era nenhum Adônis, tampouco um Quasímodo.

Ele praticava alguns esportes, menos por paixão do que por ser um homem fisicamente ativo (sim, ele era bem disposto, muito trabalhador). Os livros que leu faziam parte dos currículos da escola e da faculdade. Apenas um livro havia mexido com ele. Sobre música, ele beirava a indiferença. De uma sinfonia de Tchaikovsky, a única visita dele ao teatro, ele "gostou dos rompantes, dos golpes e dos trechos suaves - [porque,] para ele, a música era apenas isso". Arrumou um emprego numa empresa de investimentos financeiros, que era de um amigo do seu pai. Tornou-se sócio da empresa e tudo, assim, sem muito esforço, por causa da amizade do empregador com o Hall morto.

Maurice era um alguém trivial. Exceto por uma coisa. Ele era gay.

Ele sempre foi gay. Desde menino. O romance é isso: a história de um homem comum, tendo de lidar, na Inglaterra do início do século XX, com o pecado e o crime de fazer parte dos "incomunicáveis". Forster, ele mesmo gay e totalmente diferente de Maurice, foi genial ao narrar o sofrimento de um homem ordinário, proibido de ser ele mesmo, temendo ser condenado pelo Estado à cadeia (o romance se passa em 1912 e, àquela época, na Inglaterra, homossexualismo era crime). Maurice, que não dava valor à religião, tenta até hipnose para se "curar".

O livro acaba bem. Maurice acha o amor num homem de outra classe social. Ele se apaixona, e é correspondido, por um criado. Isso mostra outra coisa. Além do casal ser gay, cada um vem de uma classe diferente, outro tabu intransponível na Inglaterra de então. (Quando Maurice revela a um amigo nobre, um ex-namorado que se heterossexualizou, que está envolvido com uma pessoa, não passa pela cabeça do amigo nem que seja homem nem, muito menos, que seja da criadagem.)

Confesso que foi inevitável o pensamento, ao final da leitura, de que era apenas uma história de amor de uma bichinha sem graça. Mas em algum lugar os gays precisam ter um final feliz. Por enquanto, ao que parece, só na ficção. Forster escreveu Maurice entre 1913 e 1914 e não o publicou em vida, porque o romance jamais seria aceito. Seria criminoso. Mesmo. E cem anos depois do livro ter sido escrito, quarenta anos depois de ter sido publicado, os gays continuam sem ter direito a um final feliz.

Para ir além





Guilherme Pontes Coelho
Brasília, 8/6/2011

 

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