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Sexta-feira, 27/5/2011
História da leitura (VI): o iPad aponta o futuro?
Marcelo Spalding

Lançado em 27 de janeiro de 2010, o iPad é um dispositivo em forma de tablet (há traduções como tabuleta e prancheta), com internet wireless, bluetooth e tela touch screen de 9,7 polegadas. Apesar de ter sido anunciado como um leitor de livros e jornais digitais, o iPad mescla a funcionalidade e legibilidade dos computadores pessoais com a portabilidade dos aparelhos móveis, caindo no gosto do consumidor e vendendo 14,8 milhões de unidades apenas em 2010, cinco vezes mais do que o projetado pela companhia.

Para entendermos o sucesso do iPad é preciso lembrar que o aparelho é fruto de todo o know-how (e do dinheiro) adquirido com os bem-sucedidos iPod e iPhone.

O iPod, lançado pela Apple em 2001, é uma combinação de "I" (eu, em inglês) com Portable on Demand, algo como portátil sob demanda. Em 2001, a companhia apresentou o tocador digital como um aparelho "ultra portátil" capaz de colocar até "mil músicas em seu bolso".

O grande diferencial do iPod, entretanto, não foi lançar um MP3 Player (o sucessor do walkman), já havia outros tantos no mercado, e nem apenas o design arrojado e minimalista ao estilo Apple. O grande diferencial foi o "iTunes Store", uma loja virtual integrada ao iPod para vender músicas com uma tecnologia de encriptação que impede a pirataria, o que soou como música nos ouvidos da combalida indústria fonográfica. Com altos volumes de vendas e nenhum custo de distribuição, as músicas custam ao usuário menos de um dólar, o que fez muitos usuários preferirem a praticidade de adquirir um arquivo através do aparelho do que localizar uma versão pirata na rede. Só para se ter uma ideia da aceitação do público, no começo de 2006 a loja atingiu a marca de um bilhão de músicas vendidas, e em outubro de 2006, ao completar cinco anos de existência, o aparelho já havia vendido 65 milhões de unidades, ou 70% do mercado de MP3 players.

No ano seguinte a esses números estrondosos, a Apple enfim entra no mercado de smartphones com o iPhone, um aparelho com design semelhante ao iPod e funcionalidades semelhantes ao BlackBerry, mas com tela sensível ao toque. Assim como no iPod, o iPhone traz a iTunes Store, ampliando o público consumidor das músicas digitais vendidas no sistema. Além disso, alguns anos depois, em 2008, a Apple agrega uma importante ferramenta aos seus aparelhos, a App Store, uma loja de aplicativos integrada ao iPhone que permite a qualquer programador criar aplicativos para os aparelhos e vender na loja da Apple. Em apenas um mês de funcionamento, são feitos mais de 60 milhões de downloads pela loja, com um faturamento de US$ 30 milhões de dólares, o que impressiona o próprio Steve Jobs. Em janeiro de 2011 já seriam 10 bilhões de downloads.

Para os desenvolvedores, a App Store torna-se um importante espaço de venda de softwares (aplicativos), fazendo com que em 2011 houvesse mais de 350 mil aplicativos disponíveis ao usuário, além de 60 mil para iPads. Para o usuário, quanto mais aplicativos, melhor, pois em um aparelho que inicialmente era um telefone torna-se possível ler jornais, consultar dicionários, códigos jurídicos, bússola, jogar os mais variados jogos, calcular o índice de massa corporal, acompanhar o mercado financeiro, registrar os gastos numa planilha financeira, manipular fotos, fazer anotações, abrir arquivos dos mais diversos, acessar a conta do banco, etc, o que faz com que mais usuários comprem produtos da Apple e, girando o círculo virtuoso de Jobs, mais desenvolvedores lancem novos aplicativos.

Hoje são mais de 400 mil aplicativos divididos em categorias como negócios, educação, entretenimento, saúde, finanças, medicina, estilo de vida, música, navegação, fotografia, notícias, referências, produtividade, esportes, utilidades, viagens, tempo, redes sociais e, claro, livros. Na categoria de livros, o principal aplicativo é o iBooks.

Lançado em 25 de maio de 2010, o iBooks é um software desenvolvido pela Apple para leitura de arquivos EPUB e PDF no iPad. Ele é integrado a iBookstore, onde os usuários podem comprar diversos livros ou baixar gratuitamente clássicos de domínio público ali disponibilizados, mas também permite que se adicione arquivos próprios recebidos por email ou encontrados na internet.

Assim como no Kindle, as funcionalidades da leitura de um arquivo do formato ePub são muito mais abrangentes do que a leitura no formato PDF. No formato ePub, a troca de páginas é feita simulando um livro tradicional, com a página sendo virada. Também é possível ao leitor fazer marcações no texto, adicionar notas, destacar determinadas páginas, ampliar ou diminuir o tamanho da fonte, mudar o tipo de fonte, mudar a cor do fundo para sépia, mudar o contraste da tela, pesquisar uma palavra dentro do livro, navegar através de hiperlinks, criar um sumário personalizado, consultar dicionário, copiar um trecho do livro, entre outros.

Já no formato PDF, que é reconhecido como imagem, o usuário não pode aumentar ou diminuir o tamanho da fonte, e sim aproximar ou afastar o zoom. As páginas são deslizadas, sem o efeito de passar páginas, e não é possível fazer anotações ou marcações, apenas mudar o contraste, pesquisar determinada palavra ou destacar uma página. Por outro lado, os arquivos em PDF podem ser impressos ou enviados por email, diferentemente do EPUB.

Mais do que inovar o mercado de livros digitais, o iPad em cerca de um ano "tornou-se o queridinho tecnológico do momento, conquistou corações e mentes e fez a proeza de praticamente criar um segmento de mercado", o dos tablets. A partir dele, diversos outros tablets foram lançados, como o Galaxy, da Samsumg, o Playbook, da RIM, o Xoom, da Motorola e o Slate, da HP.

Diferentemente da Apple, que vende seus aparelhos com um sistema operacional próprio, onde se encontra a loja de aplicativos, músicas e livros, esses tablets utilizam o sistema operacional Windows, da Microsoft, ou o Honeycomb, fornecido gratuitamente pelo Google.

O Honeycomb é uma versão especial para tablets do Android, sistema operacional do Google para smartphones. Assim como ocorre na Apple, há uma loja de aplicativos, o Android Market, e uma loja de livros digitais, o Google Books for Android. Um diferencial desse aplicativo é que ele disponibiliza os milhões de livros digitalizados no site Google Books para acesso no Android.

É importante perceber, entretanto, que os livros de aplicativos como o iBooks e o Google Books ou de leitores como o Kindle, o Alfa e o Nook são, na verdade, livros digitalizados, e não livros digitais, pois foram textos criados para uma versão impressa, com as características e limitações da versão impressa, convertidos para uma mídia digital por questões logísticas ou comerciais. É uma variação dos projetos de digitalização de livros descritos no capítulo anterior, como o Projeto Gutenberg e o Domínio Público.

Por outro lado, as possibilidades do livro em geral — e da literatura em particular — quando nos suportes digitais e multimídia vão muito além de páginas e páginas de textos diagramadas em formato de códice, pois "gêneros tradicionais passam por transformações quando migram do livro para a internet, gerando novas formas de expressão", nas palavras de Lajolo e Zilbermann.

Um exemplo significativo nesse sentido são as versões para iPad de livros conhecidos do grande público, como A Menina do Narizinho Arrebitado, Alice no País das Maravilhas e Toy Story. Essas versões são encontradas na loja de aplicativos da Apple na seção de livros, e não na iBookstore, pois elas não são arquivos de livro digital para serem lidos no iBooks, e sim softwares próprios que precisam do iPad para funcionarem e exploram ao máximo suas potencialidades e ferramentas, como tela sensível ao toque e sensor de movimento.

Desenvolvido pela Disney Digital Books e lançado em abril de 2010, o aplicativo Toy Story para iPad é gratuito e explora as potencialidades multimídia do novo suporte, mas mantém o texto como centro da narrativa, aliando ao texto a contação de história, tão importante para crianças em idade pré-escolar.

Ao virar cada página, o leitor se depara com uma animação elaborada até que a cena congela e surge o texto (em inglês, naturalmente). Então o texto é lido por um narrador, enquanto as palavras que estão sendo lidas vão sendo destacadas na tela. No menu de opções, o usuário descobrirá que ele pode gravar sua própria voz contando a história (aí na língua e da forma que desejar) e depois dar o iPad para seu filho, sobrinho ou aluno ouvir a história salva na sua versão.

Além do texto, algumas páginas, quando congeladas, trazem um ponto indicando a possibilidade de clique, e, se o usuário clicar, ouvirá vozes ou som das personagens, complementar mas não necessário à história. Além disso, no topo ele encontrará um ícone, e clicando ali será remetido a uma ilustração para ser colorida. Esses ícones especiais se repetem em outras páginas, dando acesso a outros desenhos para colorir, jogos (com três níveis de dificuldade distintos) e clipes de músicas. É interessante notar, porém, que nem todas as páginas têm esses ícones extras, e eles não se repetem na mesma página, o que de certa forma não sobrecarrega o leitor, desviando sua atenção da história que está sendo contada.

Abaixo da tela há um simpático Mickey lendo um livro, como se fosse o leitor, e clicando sobre ele o usuário ativa um menu com diversas opções, como pular de página, mudar a forma como as páginas são passadas (há inclusive a opção de virar a página automaticamente), ouvir ou não o narrador, gravar sua própria narração, tutorial, acesso direto aos jogos, às pinturas e às músicas.

A história em si repete o que já vimos nas versões cinematográficas de Toy Story, mas é interessante notar como o texto conduz a narrativa e os jogos e animações tornam-se complementares ao envolvimento com a história, cumprindo um papel que a ilustração e, em alguns casos, a contação de histórias já tem feito.

Alice for iPad também foi lançado em abril de 2010 e tornou-se um símbolo das possibilidades do livro digital, com ilustrações que se movem à medida que o leitor balança o aparelho, trabalho gráfico cuidadoso e diversas animações que o transformam numa emblemática releitura do clássico de Carrol para a era digital. Na loja da Apple há duas versões, uma gratuita, com as páginas iniciais, e outra completa à venda por US$ 8,99. Diferentemente de Toy Story, Alice opta pela sobriedade, com um formato que lembra o livro tradicional tanto na navegação quanto no visual, deixando a novidade para os efeitos gráficos da ilustração.

Outra dessas primeiras versões digitais que merece referência é a adaptação da obra de Monteiro Lobato A Menina do Narizinho Arrebitado, lançada pela Globo Livros em dezembro de 2010, mês de lançamento do iPad no Brasil. O livro, disponibilizado gratuitamente na AppStore, segue a sobriedade de Alice, mas lança mão de mais recursos nas suas páginas animadas, como o som do vento, do espirro ou da água. Em determinada página, quando Narizinho entra no reino de Escamado, "onde a escuridão era pior do que a de uma noite sem estrelas", a tela fica escura e o usuário, para conseguir ler o texto, precisa mover um vagalume pela tela, iluminando-a a partir de sua intervenção.

Não por acaso os três exemplos citados são livros infanto-juvenis. Perrone-Moisés, num texto dos anos 90, já alertava para o que chama de desafeto progressivo pela leitura: "leitura exige tempo, atenção, concentração, luxos ou esforços que não condizem com a vida cotidiana atual. Ouvi recentemente, de uma criança com preguiça de ler, a reclamação de que 'os livros têm muitas letras'. De fato, para concorrer com os outros meios de comunicação, os livros atuais e futuros precisarão ter mais atrativos do que aqueles ocultos pelas letras".

Por ora, o espanto com a novidade ainda é maior e muitos sabem descrever o que as crianças (e a sociedade em geral) estão perdendo. É preciso aguardar os próximos capítulos dessa história, porém, para conhecer o que as crianças (e a sociedade em geral) estão ganhando.


Marcelo Spalding
Porto Alegre, 27/5/2011

 

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