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Sexta-feira, 17/6/2011
Pressione desfazer para viver
Ana Elisa Ribeiro

Algumas ações que a gente pode executar no computador me fazem morrer de inveja. Talvez a mais relevante delas seja o "desfazer" (que em alguns programas está em inglês "undo" e que pode ser similar ao delete e ao "back"). Eu morro de inveja daquela possibilidade de "desexecutar" uma ação, de retroagir, de me arrepender do escrito, desenhado ou testado e simplesmente apagar tudo. Mas não é apenas apagar. É desfazer. É voltar ao ponto zero, àquele momento em que decidi fazer algo. É como não viver aquilo.

Mas mesmo no computador aquela ação e aquela sensação são enganosas, meus caros leigos. A interface gráfica (que é com o que a gente lida) na verdade esconde uma operação mais complexa. Nos bastidores do computador, lá onde os códigos e as linguagens não são mais legíveis para pessoas leigas como eu, o computador gravou o caminho que eu fiz ao me decidir por uma ação, ao me arrepender dela (ou ao avaliar mal seu resultado) e ao apertar o "desfazer". Na verdade, nada se desfaz. Os indícios, os rastros e as pistas ficam lá, para quem sabe ler. O que importa, no entanto, para uma leiga é que parece que eu desfiz tudo, sem deixar marcas e mágoas, e que poderei começar de novo, em especial, fazendo melhor.

Não é para morrer de inveja? É claro que é. Inveja de poder desistir sem me macular com escolhas erradas; inveja de poder zerar a conta; de poder optar por refazer, mas muito melhor, com resultados muito mais felizes e satisfatórios. Vejam que maravilha esta máquina pode ser.

O "undo" é uma espécie de botão mágico. Na vida, esses dispositivos não existem. A decisão errada de sete ou oito anos atrás, que inclusive nem parecia um decisão (camuflada que estava pela negligência e pela irresponsabilidade), faz um imenso estrago nas ações posteriores e nas possibilidades que passarão a não existir. Mas, é claro, existirão outras. Mas serão bacanas?

Sem o "desfazer", as pessoas precisam viver de acertos. A ideia é acertar, não é? Ou alguém já se prontifica a errar, sem pudor? Não é meu caso, muito embora eu tenha deixado de ouvir meus "instintos" e mesmo as pessoas mais sensíveis do que eu várias vezes. Uma lástima. Eu, que sempre me esforcei por me ouvir antes de agir (talvez seja o famoso "ouvir seu coração"), consegui errar desastradamente muitas vezes. E não existe "undo", constato, cheia de cicatrizes pela alma afora.

Como acertar sempre? É algo da ordem do inviável, não é? Não é possível acertar sempre. Os alvos são móveis e imprevisíveis. Não nos favorecem frequentemente. E viver acertando não depende apenas de nós, de nossas vontades individuais. É claro que vamos errar, mesmo quando achamos que estamos na direção do acerto. Quantas vezes me enganei com isso! Erro de avalição, erro de trajetória, erro desde o início, quando algo me dizia para não continuar.

Bem, mas o computador permite coisas que deixam a vida da gente no chinelo. O computador me sinaliza coisas que só posso fazer depois das outras. São como pré-requisitos, para me ajudarem a acertar na operação. O computador também permite que eu tenha várias experiências ao mesmo tempo e que fique apenas com aquela que me parecer mais satisfatória. E como isso seria bom. Seria como viver no mundo do "se", como fazemos quando as coisas vão mal na vida real, em que não se pode decidir de novo por caminhos que já ficaram para trás.

O computador me permite desenhar sem ter talento. O computador me permite colorir e simular o resultado, dando-me a opção de remodelar tudo, se eu quiser. E com rapidez, sem muita resistência. O computador me testa e eu nele testo meus desejos. Não é assim com a vida, ao menos geralmente. Nela eu me vejo de cara com meus medos, claro, coisa que perdi quando lido com a máquina. Mas na vida as decisões são booleanas. E pior: não se pode dimensionar que efeito as decisões terão de fato. Atropelar um pombo e matar uma abelha podem ter efeitos catastróficos tanto quando decidir sequestrar um avião. Não será gratuito se o leitor se lembrar de uns filmes que tratam de algo assim, como "O efeito borboleta" e assemelhados. Essa ausência do "desfazer" e a sequência desencadeada por nossas ações (inclusive na linguagem) são intrigantes desde sempre, e principalmente no cinema.

Se eu pudesse, eu juro, eu apertaria o "undo" para algumas coisas nesta vida. O problema é que nenhuma ação traz consequências apenas boas ou apenas ruins. O problema é que um ou dois dos efeitos grandes dessas decisões que eu queria apagar são deliciosos, experiências e resultados importantes, relevantes e fundamentais para a vida que se seguiu. Como apagar uns itens e não outros? Existiria um "desfazer" seletivo? O que está posto que pode ser positivo, mesmo nesta lama? O "undo" do computador é mais simples porque parece relacionado a apenas uma ação, sem maiores consequências.

Mas se eu pudesse eu deletaria algumas partes desta história. Tenho certeza. Seria como matar o que me agride hoje. Seria como me poupar, uma espécie de presente que eu me daria. Há, certamente, coisas que a gente dispensa viver, não é mesmo? E o que fazer com essas coisas senão instalar-lhes uma tecla "desfazer"?

O computador me deixa ansiosa pelas analogias que ele permite com a vida. Não bastasse dizer que "processo" informações, como as máquinas, eu também me ressinto de não poder deletar sem deixar vestígio. Ou ao menos uma ilusão de que nada foi registrado de um evento indesejável. No entanto, o sistema do computador executa ações ilegais e se fecha, repentinamente. E eu, viva que estou, consigo me ressignificar, isto é, corrigir meu próprio software quando me vejo em apuros. E vamos nos invejando para lá e para cá: eu porque não desfaço; o computador porque não experimenta.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 17/6/2011

 

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