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Quinta-feira, 7/7/2011
Dias sombrios
Elisa Andrade Buzzo


foto: Sissy Eiko

Ai dos paulistanos que dependem do nylon e do moleton neste inverno.
Estarão condenados ao frio eterno.
A paulistana que adora mostrar a bunda.
Nesta voragem facilmente ficará moribunda.

Chegou a hora... porque o paulistano nunca faz compras decentemente para enfrentar o frio, seja por preguiça, pela falta de grana ou pela certeza de que "tudo vai passar". Mais cedo ou mais tarde a primavera vai surgir e espalhar poesia. E assim, mais uma vez, chega o dia inexorável de abrir as gavetas mais profundas do guarda-roupa, sacar as malhas infestadas de bolinhas, reaver as naftalinas, praguejar o preço do cachemir, maldizer a falta de luvas, a perda das polainas, e de encontrar a moda esquisita e multicolorida que se vê nas ruas, em que o vestir-se se transforma em montar uma concha de retalhos a partir dos camelôs e da oferta medíocre das lojas de departamento.

Há de se pós-graduar na Sorbonne sobre os mistérios dos nós dos cachecóis, a arte do bem-vestir invernal, sobre as sobreposições e as camadas diversas que o inverno pressupõe ao corpo desnudo como passível de ser escultura, pois em matéria de vestimenta o paulistano facilmente passa do elegante ao assaltante. O fato é que uns pecam pela falta, outros pelo exagero. Como tudo na vida, enfim, mas no inverno, quando menos estamos preparados para ela, é que os disparates se sobressaem, a beleza e o feio se misturam a tal ponto que nada mais se classifica ou importa. O frio é democrático. E assim, veremos e apontaremos sem dó pelas ruas a combinação manga comprida e manga curta, à la ginasial, chapéus bizarros do tempo do onça, toucas da vovó, botas de prostituta e a necessidade contraditória de cobrir e mostrar o corpo. O paulistano é antes de tudo um criativo. Assim, não é por causa de uma frente fria que ele perecerá.

A bem dizer, o paulistano não se prepara para a chegada do inverno. É um Macunaíma que de repente se encontra face a face com um gigante. A estratégia de guerra, o próximo passo, sempre fica para adiante. O sonho desta noite durará apenas alguns dias, logo mais o sol vai aparecer e acordaremos refeitos. Ele o omite deliberadamente de seu calendário climático a partir do momento em que entende que as quatro estações do ano estão contidas num só dia. Seu céu, de cinza melancolia e poluição, passa a uma nuvem espessa recobrindo seus poros. E assim nos acostumamos ao grafite como se nada além dele fosse possível.

De uma vez, todos os carros estão pretos, em fúnebre cortejo e os cemitérios adquirem aquela tonalidade entre a ventania e o verde-musgo. Andamos atônitos como num filme de terror aguardando o anticlímax do golpe final. O nariz e os cabelos gelam e das bocas sai apenas o murmúrio "que frio". Ninguém entende o que acontece. E só se fala do tempo, nos elevadores, nas repartições, nos shoppings, nos laboratórios. Se antes as conversas frouxas giravam em torno dele, agora ele é o único assunto permitido.

Chegou a hora de andar com os braços cruzados e o coração apertado. A tarde é a mais fria do ano, as mãos se enlaçam, friccionam-se como se pudessem gerar fogo. Nunca se desejou tanto o calor, uma nesga de sol, a quentura de um corpo se procura com aflição - aquele mesmo calor que maldizemos como insuportável, quando desejamos um ar condicionado, um gelo entre a língua e os dentes. Os lábios se comprimem em silvo agudo. Entretanto, dessa sensação não se escapa e ela é boa, fortificante e dolorosa.

São necessários anos para se compreender de qual sutil e sombria matéria é feito o inverno paulistano. Tem personalidade de homem arredio. Sabe-se que ele vai chegar, mas somos pegos desprevenidos, como se estivéssemos nus, aparvalhados diante de sua súbita presença. E então o encontro seria sempre algo genuíno, surpreendente, beirando ao sublime, embora carregado de ingenuidade. Somos todos castos diante da intrusão do frio. Acompanhar uma cidade que se enconcreta e se enclausura, seja pela janela do apartamento constatando a falta de céu, não bastando que se enrole em mil cobertores, seja caminhando pelas ruas ou na proteção do ônibus nas linhas pelas mais belas e mal-afamadas ruas do centro da cidade.

A vida é uma constante aceitação se debatendo contra o desejo, um encher e esvaziar cálices e estantes, e o paulistano se acomoda bem diante das ambiguidades da existência. Equilibra-se no somatório das buzinas, dos motores, raps de celulares, espirros e de uma tosse débil, desacreditada da força da vida. Assim como se dá conta de que não pode se livrar do trânsito e da miséria onipresente, ele entende que o frio é uma praga passageira, motivo de altercação e piada. Daí largar seu corpo como que desapaixonado, que mergulha a esmo na escuridão, e parecer que não tem expectativa diante dos mínimos fatos cotidianos.

São dias em que nossas casas nos gelam e nos expulsam. Frio por frio melhor ficar na rua e se mexer, ver o mundo mal arranjado do inverno paulistano. A vida corre solta, displicente. De nada servirá lançar-lhe amarras. Anoitece, a neblina se espessa e a cidade cinza fica ainda mais cinza. Uma garoa fina não molha, antes envolve com frialdade os transeuntes, como gatos pardos, perdendo-se pelos caminhos.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 7/7/2011

 

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