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Quinta-feira, 18/8/2011
Liberdade é pouco
Elisa Andrade Buzzo


Foto: Magaly Bátory

Dizem que os solteiros têm diante de si todas as possibilidades do mundo, que devem "focar", "investir", canalizar energia neles próprios e, ainda assim, quando o sol vai se pondo, depois de mais um dia de si para si, eles se entristecem, querem chegar em casa e dividir os prêmios e os medos, anseiam, pois, ser propriedade de outrem. Não têm cercas ao seu redor nem grilhões aos seus pés, mas se condenam pela velhice precoce aos trinta, a falta de perspectiva e cultivam uma autopiedade tragicômica - "vou passar o resto da vida sozinho", "o que falta em mim?"

Como o próprio nome diz, "desimpedidos", não há nada que os impeça, que obstrua, que atravanque sua passagem e suas vontades. Mesmo atarefados em seus afazeres, os solteiros acham tempo pra tudo. A facilidade é sua companheira. Uma disposição medonha toma conta de sua vida, uma necessidade de preencher as horas e de não deixar que se esgueire uma ponta de reflexão entre o dormir e o acordar. Durante o banho, aquele tempo mínimo, mas precioso para ter insights, revelações, melhor cantar alto e dissuadir a cabeça das subjetividades do momento.

É bem verdade, os solteiros se encontram com grande frequência, e evitam os casados e namorados. Quem quer segurar vela ou tem vocação para ser candelabro? Estes últimos aqueles fazem questão de desmerecer, aliás, os pombinhos chatos, afinal, eles só falam sobre cozinha, planejamento familiar, guardar dinheiro, enaltecem as uniões estáveis e bem-sucedidas. Eles estão, como se diz, "fazendo suas vidas", enquanto os descompromissados têm a obrigação social de "começar logo a vida" ou "entrar nela", como se fossem inaptos para tal ou necessitassem de uma bênção especial. As palavras-chaves dos pombos, comprometimento, segurança e estabilidade são capazes de assustar as almas mais finas e delicadas.

E se, no campo dos comprometidos - da mesma forma que os solteiros são atacados pelo spleen -, com o tempo tudo pode se tornar muito chato, lá se vai o papo, não há novas perspectivas diante da vida. Enquanto os solteiros tem os olhos bem abertos, os compromissados trataram de colocar uma venda, não de fetiche, mas nos moldes de um cabresto bem amarrado. E ai de quem sair da linha. O casal engorda, adquire manias e programas duvidosos, não vai além do shopping center, da macarronada na sogra, do Cinemark, não tem mais, enfim, aquele gosto pela peripécia e das descobertas numa cidade sem estrelas, pouco propícia à convivência aberta, em que se deve ter paciência para fuçar e descobrir os quase arqueológicos recantos culturais e naturais. A tendência ao desleixo e ao comodismo é típica de alguns seres humanos. É a paixão que rende largueza ao passo. Por isso, pombos, movimentem-se, deem a cara a bater, alonguem as asas e não se conformem com os restos de um dia fumacento.

Ao contrário, deveria, pois é, ser ao contrário, mas não é bem assim que funciona (quando temos certeza de algo devemos ficar preocupados e investigar esta tal certeza que parece evidente, mas que pode mascarar outras evidências afastadas) - o grupinho dos solteiros também não vê, apesar das tentativas infundadas, perspectiva diante da vida. Falta-lhe uma diretriz, um anzol com isca cintilante. Não adianta ir ao Espaço Unibanco, à Mostra Hitchchock, ao Ibirapuera, mergulhar no trabalho e no papo existencial-cabeça. Um solitário sempre repele outro solitário, chegam mesmo a evitar qualquer contato humano e quando alguém lhes dirige a voz respondem como que acuados, como se estivessem perante um juiz que lhes inquirisse o porquê de sua solidão.

Quando as conversas entre eles acontecem (as melhores são com os outros solteiros, nada de comprometidos, melhor não forçá-los a admitir suas próprias fraquezas), acabam sempre num suspiroso "que merda". Mas tudo bem, é preciso trabalhar e ele, o trabalho, sempre vem em levas gigantescas, então se nos enterramos nele madrugada afora não é decerto por falta de algo mais estimulante.

E na mesa do bar, na mais animada das conversas, os amigos solteiros mais falam sobre sexo, pois quando algo está afastado de sua vida nada mais justo do que transformá-lo na coisa mais importante do universo. Os poetas estão aí, na fase aparentemente mais plena de suas existências, no ápice de seu vigor, logo ao lado da descida da ladeira, maldizendo suas pequenas desilusões, ansiando do corpo um simples tratado de divisão: termino nesta linha para que você comece aqui e nos confundamos.

Uns estão livres, outros presos e parece enfim que nem todos se satisfazem com sua condição declarada. A questão é controversa. Enquanto isso, para o grupinho dos casados, tudo deve ser visto em dobro. Um pode? O outro não? Então não dá. São gêmeos siameses unidos por uns pontos internos invisíveis e frouxos. Chega a ser engraçado ter a sensação de conversar com um bicho de duas cabeças, dividir o olhar pela metade para não ferir nenhuma delas e cuidar para não relembrar aquelas histórias do tempo do onça, quando éramos todos adolescentes e apaixonados. Sim, aqueles corações também são delicados e basta um sopro para desestabilizar a mais sólida casa de Prático.

Os amantes bem que tentam um certo isolamento, mas este não dura muito, mostra a antológica crônica de Rubem Braga, que diz: "O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois apenas".

Um dia os amantes cansam das uvas e... o que eles fazem? Primeiro convidam outros casais para sair com eles. Não, nada de swing, é só mesmo para ir no Fran's, "relembrar os velhos tempos", assistir um filme no shopping família, jantar bife acebolado. Trocam experiências saudáveis e receitas. Uma epopeia segura. Logo mais será a vez deles começaram a convidar os amigos solteiros, em busca de novas e grandes aventuras.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 18/8/2011

 

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