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Sexta-feira, 7/10/2011
À primeira estrela que eu vejo
Ana Elisa Ribeiro

Era anoitecer. O Sol já se recolhera, enquanto a Lua surgia em algum lugar do céu que não podíamos contemplar. Mas é sempre bom saber que ela está lá. E resolvemos nos deitar na rede, pendurada na varanda, para viver uns momentos de pausa naquele dia tão enfiado de problemas e ações. É parar, momento de parar. Parar para pensar, para olhar, para enxergar, talvez. O dia, as pessoas, as conversas, os alimentos, os sons e tudo o que há passaram tão desavisadamente em frente ao nosso olhar. Desmazelo quase. Aflição quase nenhuma, de tão desapercebido que o dia passa. E ali estávamos nós, mãe e filho, deitados na rede bordada que ganhamos de um amigo.

Deitados então na rede, falávamos das pequenas ocorrências de um dia comum. A escola, o recreio, o colega brigão, o trânsito, os cabelos, as unhas, os telefonemas, os espirros, o dever de casa. Falávamos sem o tilintar dos sinos ou a buzina ansiosa da van que busca meu filho para ir ao colégio. Falávamos ignorando um pouco o alarido da rua ao lado, por onde muitas pessoas passam voltando para casa. (Sim, neste bairro ainda moramos em casas, com telhados só nossos e jardins de grama, como se estivéssemos fazendo algo muito acintoso.) E foi então que uma estrela surgiu no céu, bem à nossa frente.

Piscando levemente, ela parecia ainda indecisa. Enquanto meu filho reparava nela, atento, eu ainda me enrolava com as franjas da rede. E aí ele me lembrou daquela brincadeira eterna e popular: "Mãe, é a primeira estrela que eu vejo. Vamos fazer um pedido?". E entoou, evocativo: "Primeira estrela que eu vejo, satisfaz o meu desejo...".

Eu me surpreendi um pouco com a ideia. Nem sabia que meu filho já conhecia a brincadeira, muito menos que andava assim tão cheio de desejos. Lembrei que pedi muitas coisas às estrelas da noite, especialmente às primeiras que lampejavam diante dos meus olhos míopes. Lembrei também que andei pedindo coisas a Deus, aos santos, às santas e a Iemanjá, que atendeu quase prontamente à minha última sessão de pedidos aflitos. Já passei por Jesus e Deus, em momentos de angústia extrema; por São Jorge, quando a ideia era guerreira; por São Judas Tadeu, inclusive fazendo e cumprindo promessa (e recentemente o descobri meu protetor, São Judas/Xangô); Nossa Senhora Desatadora dos Nós, à qual ainda devo visita no santuário em Campinas (SP); virei as costas a Santo Antônio, mas andei dando umas rezadinhas para Santa Luzia, em intenção de meu irmão. Mas fazia tempo que eu não pedia nada às estrelas.

Meu filho, então, se calou. Ainda criança, já sabe que os desejos infinitos, aqueles bem internos, estados d'alma mesmo, pedem silêncio, calma, paz e um pedido concentrado. Calou-se o menino para centralizar as forças do pedido numa espécie de oração estelar. Peça, meu filho. Peça seu carrinho, seu brinquedo, sua infância. Peça sua alegria, que ainda é fácil como jogar bola de gude. Peça sua namoradinha, que ainda o paquera apenas com olhares. Peça sua aula de judô, seu DVD do Scooby Doo, sua ida ao cinema. Peça sua pipoca, seu chaveiro e sua falta de banho. Peça seu combo de sanduíche. Peça seu passeio pela praia. Peça, meu filho, fale com as estrelas. Parece que as crianças costumam ter muito mais crédito nos pedidos. Há qualquer tolerância a mais com elas. Peça.

Era o que eu esperava: que meu filho se calasse, mas concentrado aos pedidos das coisas que ele via na TV, nas propagandas de fábricas de brinquedos ou nas promoções dos programas infantis. Eu esperava que a primeira estrela a surgir na nossa noite, na varanda, deitados na rede, fosse ouvir os cochichos de um garotinho esperto, ansioso por ganhar uma pista de carrinhos, um robô, um bicho de pelúcia ou um novo transformer. Mas não. Meu filho, como quase sempre, é mais esperto e observador do que posso supor. E ele me surpreendeu. Depois de uns minutos de silêncio profundo, inclusive de olhos cerrados, como quase a rezar, meu filho disse: "pronto, mãe, já pedi". Eu, incontrolavelmente curiosa, como quase toda mãe-coruja, não me aguentei na discrição (que me parecia de bom tom) e acabei perguntando, meio timidamente: "O que foi que você pediu para a estrela?"

Meu filho não pestanejou. A despeito de todo o desejo pelos carrinhos e pelas plataformas de jogos eletrônicos; a despeito das propagandas de TV e do apelo dos supermercados; a despeito de tudo quanto é promessa de alegria e brincadeira, meu filho me revelou: "Mãe, eu pedi para você ser feliz".

Eu, completamente desfeita, envergonhada por me deixar subestimar os mais profundos desejos do meu pequeno; constrangida por desconsiderar a capacidade de observação e mesmo a inteligência dele; esquecida de que tinha dado a luz a um canceriano doce e sensível no trato com a mãe (sua única companheira de morada, cama, mesa e banho), só pude abraçá-lo muito, verdadeiramente agradecida, cheia de pejo por deixar tão à vista minha infelicidade flagrante, ou meio sem jeito porque não consigo mesmo esconder qualquer coisa dele neste meu olhar de Capitu. Ainda assim, diante de um exímio leitor de pessoas, tentei esconder a lágrima quente que me escorreu dos olhos. Acho que consegui.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 7/10/2011

 

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