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Segunda-feira, 17/10/2011 Sobre o ensaio de Gao Xingjian Ricardo de Mattos ![]() "Nesta época em que a política a tudo permeia e a lei do lucro mergulha o mundo na incalculável ganância humana, onde podemos encontrar a poesia?" (Gao Xingjian). Gao Xingjian nasceu na China em 1940. Laureado em 2000, foi o primeiro escritor chinês a ganhar o prêmio Nobel de literatura. Além da escrita, dedica-se à pintura - são dele as imagens utilizadas nesta coluna -, à tradução, à crítica e ao teatro. Em 1987 deixou seu país natal e estabeleceu-se em Paris. Já foram traduzidos para o português seus livros A montanha da alma e Uma cana de pesca para meu avô sendo que há edição nacional do primeiro. Em 29 de junho deste ano, leu em Turim, durante o evento denominado Milanesiana, o ensaio intitulado Ideologia e literatura(1), que será objeto desta coluna. Segundo o autor chinês, o século XX foi o período de tempo em que as ideologias influenciaram a literatura de forma mais marcante. Até então, existiam as escolas: um estilo literário, uma forma de escrita adquiria predominância e os candidatos às Letras ajustavam seus trabalhos conforme o riscado. A ideologia difere do idealismo pelo afã de impor o molde e excluir quem dele afastar-se. O autor passa a ser o executor da forma e o crítico assenhora-se do papel de capataz - ou vice-versa. Lembremos que Raquel de Queiroz precisou explicar-se a membros do Partido Comunista e enfrentá-los para ver publicado seu primeiro livro, O quinze. Por atitudes assim, Xingjian considera a ideologia o mal do século. Podemos distinguir o ideólogo do idealista. O primeiro, busca reproduzir para seus contemporâneos a cartilha a qual está adstrito. Muda as palavras, capricha mais ou menos e nisto encontra seu prazer. Morre no seu século. O segundo, encontra ideias que julga salutares para a vida humana e para o convívio em sociedade e divulga-as de maneira mais ou menos inocente. Contudo, como consegue atingir os anseios arquetípicos da Humanidade, geralmente não morrem.
Segundo Xingjian, a ideologia é composta de estrutura filosófica e de valores. Isso parece-nos complicado, pois valores são categorias que importam por si, não são componentes de algo. Ao contrário, as ideologias tentam parasitá-los almejando respeitabilidade. A família é um valor em si e, no entanto, até o nazismo autoproclamou-se seu defensor. Utilizada como instrumento, a literatura - que deve gozar de independência e autonomia - tornou-se "acessório da ideologia", nas palavras do autor.
Seriam três os meios propostos por Xingjian para o que ele chama "a salvação da literatura": desligamento de ideologias, ignorar modismos de mercado e enfrentamento dos problemas humanos presentes. Ele propõe a escrita como busca e forma de permitir a compreensão, não como atestado e submissão. Escutamos aqui um eco do suíço Carl Spitteler, Nobel de 1919: "Pois se conformamos a nossa maneira de viver com o exemplo comum, seremos de preço comum e nunca mais desfrutaremos nobres alegrias nem aquelas dores que enriquecem a alma!". Ele não menciona quais são os "problemas humanos presentes", o que nos dá liberdade de incluir entre eles a ausência de sentido existencial.
Despiciendo considerar o conflito entre o ensaio de Xingjian e as práticas contemporâneas. No momento em que ele afirma que "a literatura não é como uma mídia e não pode ser objeto de cobertura diária", tentamos localizar uma antologia de textos escritos com formatação própria para Twiter. Deste trecho, fizemos uma ponte com outro ensaio publicado no mesmo caderno, escrito pelo professor Francisco Foot Hardman (2) a respeito do ensaísmo contemporâneo. Segundo Hardman, a produção poética, artística ou cultural possuem "temporalidade próprias" para vicejar. São frutos do espírito: planta-se a semente, aduba-se - ou não -, acompanha-se o crescimento, poda-se, enxerta-se e, ao devido tempo, colhe-se a produção intelectual. Juntar duas palavras e esperar palmas não configura criação literária. Literatura em "tempo real" ou em "tempo zero", para usar expressões de Hardman, é uma das ilusões da atualidade. Nem erva-daninha germina em "tempo zero". Ricardo de Mattos |
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