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Terça-feira, 18/10/2011
Steve Jobs e a individualidade criativa
Wellington Machado

Steve Jobs contribuiu bastante para o esvaziamento das tradicionais salas de tevê nos lares americanos. As patéticas imagens das famílias reunidas no sofá, assistindo a seriados, novelas ou programas de humor, ficaram lá nos anos 80. Vários fatores contribuíram para esse "esfacelamento" familiar, que se estendeu pelo mundo: o barateamento das tevês (facilitando a compra de novos aparelhos para outros cômodos da casa), a consequente necessidade individual de assistir a outros programas (quebra do gosto comum, padronizado) e a invenção do computador pessoal.

Os psicólogos já desistiram de lutar contra o ideal de família contemporânea, onde o pai vê futebol na sala; a mãe, novela no quarto; e os filhos vidrados nas telas de seus respectivos computadores no quarto. Ao que tudo indica, esse ideal "independente" é um caminho sem volta.

Já não encaramos mais com tanto estranhamento as pessoas nas ruas, pontos de ônibus ou nos metrôs, concentradas nas pequeninas telas de celulares, trocando mensagens ou navegando na internet, alheias ao mundo que as cerca. Já nos acostumamos com as pessoas enfurnadas em seus netbooks ou tablets em cafeterias, shoppings ou livrarias. E os aficionados por música andam pela cidade, conversam sem tirar o fone do ouvido.

Lembro bem de ter visto, no início dos anos 90, um Macintosh sobre a mesa de uma secretária. A minha primeira sensação foi de encantamento com o design do aparelhinho. Depois, veio-me logo um pensamento: "essa simpática maquininha pode ser transportada com certa facilidade pra qualquer lugar". O Macintosh, posso estar enganado, foi o precursor do notebook. Após "individualizar" o computador, Steve Jobs partiu para a portabilidade, e acabou por colocá-lo na palma da nossa mão. O que em princípio parecia uma atrocidade (um computador de mão?!), um impulso pueril pelos gadgets, aos poucos vai fazendo sentido e ganhando o aval e a adesão da sociedade.

Alvoroço econômico

O alcance e os efeitos das criações de Jobs implicaram em transformações não só psicológicas ou sociais, mas também na dinâmica da economia mundial. A possibilidade de compactar músicas em pequenos arquivos, que podem ser transportados pela rede mundo afora, desancou o monopólio das gravadoras, que mantinham seus cantores sob sua tutela. Essas empresas, que enchiam as burras de dinheiro, trabalham agora sofregamente em algum fundo de quintal.

Os cantores também sofreram com as inovações tecnológicas e tiveram de se adaptar às mudanças. O faturamento com os direitos autorais foi por água abaixo com a livre circulação de músicas pela internet. A relação entre democratização da música na rede e arrecadação de direitos ainda é conflituosa.

A economia das empresas de comunicação também sofreu um baque - e tudo indica que o fosso é bem mais fundo, com a popularização dos tablets. A circulação de jornais e revistas em papel está em queda livre, os números não mentem.

Outros ramos menores também estão desmilinguindo-se. As bancas de jornais, por exemplo, estão penando para sobreviver - adicionaram balas, chaveiros e badulaques de toda espécie ao seu produto principal. As pequenas e médias livrarias estão quebrando: em Nova York eram mais de 300 há dez anos; hoje não passam de 30! Não é incomum encontrarmos livros com descontos de até 20% do preço de capa na internet - e com frete gratuito. As locadoras de filmes também são uma espécie em extinção.

Essa "nuvem econômica" é muito dinâmica: ela se molda e se desfaz com uma rapidez incrível. Em movimento inverso a essas empresas que estão falindo, surgiram com a internet e a com a portabilidade (gadgets) múltiplas possibilidades de ganhar dinheiro.

Paradoxos da individualidade

Grande parte dos que estão levando um bom quinhão nesse "turbilhão econômico" migrou de um ambiente coletivo, externo e físico (lojas de rua, shoppings, escritórios) para um trabalho solitário de pequeno porte - às vezes na própria residência. Empresas "de garagem" faturam milhões e batem recordes sucessivos em cotações nas bolsas de valores. Um bom músico pode montar um estúdio eficiente em seu próprio quarto, gravar um álbum e distribui-lo pelo mundo afora. Grandes empresas incentivam seus empregados a trabalharem isoladamente, no conforto de suas residências, evitando os custosos e entediantes deslocamentos.

Steve Jobs, com suas criações, acabou intensificando a individualidade. É no mínimo intrigante a indiferença de um indivíduo que escuta música com fone de ouvido no metrô, alheio ao que acontece ao seu redor: não nos conformamos com sua tentativa de "fuga da realidade". Bem como o cara que não desgruda o olho do computador nem na hora de comer. Ou mesmo aquele que redige uma mensagem no celular enquanto atravessa a rua. Há um certo, com o perdão da expressão, "ensimesmamento tecnológico".

O que soa paradoxal é que a individualidade contemporânea é, ao mesmo tempo, significado de diversidade. Steve Jobs acabou por quebrar o que havia de mais enfadonho: a vida rotineira da família reunida no sofá, vendo os mesmos programas diariamente, quando cada indivíduo, em seu íntimo, não queria estar ali; queria fazer algo diferente. O que Jobs fez foi "apenas" inventar as pontes tecnológicas para suprir esses desejos (necessidades) pessoais ainda desconhecidos pelos próprios indivíduos. A tão propalada tentativa de "coletivização harmônica" das pessoas tornou-se uma falácia, pois o ser humano é, em sua essência, diverso em sua individualidade. Os momentos de "exteriorização", de agrupamento são exceção; não a regra.

O ser humano se realiza na sua individualidade, nos seus momentos de isolamento. As maiores invenções, as maiores obras da literatura, pintura, música etc. foram frutos de reclusão, dos momentos de concentração e interiorização. O homem "produtivo" sorve o êxtase da sua criação na maioria das vezes de forma isolada - seja ela uma frase bem feita, um produto acabado, um projeto concluído, uma música composta. Estar sozinho é praticar a diversidade, contrária a qualquer tipo de padronização. Montaigne se isolou na torre de um castelo para redigir seus ensaios. Proust tirou proveito do seu "isolamento asmático" para escrever sua monumental obra.

Outro "paradoxo da individualidade" trata justamente das várias possibilidades de contato proporcionadas pelos novos gadgets - de novo, Steve Jobs deu um belo empurrão. Enquanto o nosso primeiro impulso é recriminar o sujeito concentrado na tela de um computador num café, ou o garoto que ouve música no metrô, ou o que digita mensagens na rua, mal nos damos conta de que eles estão conectados em redes de contato muito maiores dos que se estivessem na mesa de um bar. A substituição do contato físico pelas relações virtuais perdeu o status de patologia social.

Não se trata aqui de defender o isolamento radical, aceitar passivamente o desmantelamento familiar ou o fim das amizades "físicas". Mas há de se encarar a virtualização dos contatos, do consumo, das trocas de informações e experiências não como uma "tecnomania", mas como uma realidade talvez irreversível. Steve Jobs, ao colocar o computador na palma da mão - e, por conseqüência, "isolar" o indivíduo - abriu caminhos para a manifestação de uma diversidade criativa. E deixou um legado espinhoso para os psicólogos e sociólogos.

Wellington Machado
Belo Horizonte, 18/10/2011

 

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