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Quinta-feira, 27/12/2001
Ainda vale a pena
Adriana Baggio

Hoje é dia 27 de dezembro. Já deu tempo de curar a ressaca do Natal. Seu aparelho digestivo já teve tempo de expurgar o menu natalino, diferente do que ele está acostumado no resto do ano. Talvez você até já esteja tentando trocar os presentes que não ficaram adequados ao seu corpo ou ao seu gosto. Fora isso, o que mais ficou do Natal? Alguns restos de peru no freezer e uma fatura de cartão de crédito que vai causar cólicas de arrependimento em janeiro?

A humanidade vive de rituais para marcar os acontecimentos, para celebrar, para determinar a época em que certas atitudes deve ser tomadas. O Natal tem uma origem ritual que não tem nada a ver com shoppings lotados, por incrível que pareça. Mas com certeza, para boa parte da humanidade o sentido do Natal original já está perdido. No entanto, em meio às sacolas de compras e receitas de peru, acredito que as pessoas ainda procuram fazer coisas diferentes no Natal. Junto com a festa vem a obrigação de tentar ser melhor, de ajudar o próximo, de esquecer as picuinhas, fazer as pazes com o cunhado, com a prima, com o irmão, de tentar ser um pouco mais espírito e menos matéria. O ideal seria que a gente tivesse esses bons impulsos em todas as épocas do ano, mas isso não acontece. Uma teoria muito pessoal diz que a necessidade que o ser humano tem de ser sinalizado, de ter limites estabelecidos, também se reflete na hora de tentar mudar e ser melhor. É aí que entram os rituais. Precisamos de um Natal, que prega a fé, o amor, a generosidade, para tentar encontrar dentro de nós esse tipo de sentimento. Precisamos de um Dia das Mães que nos redima de nossos papéis de filhos não tão devotados quanto deveríamos ser. Precisamos de um Ano Novo para tomar coragem e pensar na vida, e pelo menos tentar fazer planos que nos tirem da mesmice em que vivemos.

O ponto onde quero chegar é que, mesmo com o consumismo, a hipocrisia e a falsidade que também acompanham estes rituais, ainda existe nas pessoas um sentimento mais nobre, uma intenção em ser melhor. É por isso que acredito no Natal. Se a gente não tivesse essas datas de pagamento do nosso imposto sentimental, provavelmente as coisas estariam piores. Mesmo quando você vai atrás do presente de amigo secreto do chato do seu colega de trabalho, já está sendo uma pessoa melhor, porque talvez, pela primeira vez, esteja pensando nele, em seus gostos, em sua personalidade.

Agora o Natal passou, você já cumpriu seu papel tentando ser uma pessoa melhor para seus amigos e sua família, chegou a hora de fazer coisas boas para você mesmo. São mais alguns dias de stress antes do Ano Novo. Além da preparação para festa, existe aquele alarme na sua cabeça cobrando as promessas que você vai fazer para ser diferente. Mas perceba: o fato de você ir atrás das lentilhas e da calcinha branca já cria um espírito de renovação, de mudança. Você está pensando em melhorar. Na pior das hipóteses você vai agradar seu namorado, marido ou quem quer que seja com uma calcinha nova. E isso não é legal?

O que quero dizer com isso tudo é que, mesmo permeados de artificialismo, rituais como Natal e Ano Novo ainda podem ser aproveitados como marcos para nosso aprimoramento. Não há ilusão: comprar presentes vira um inferno, participar de algumas confraternizações é um pé no saco, ter que encarar estrada lotada para passar o reveillon na praia é uma roubada. Mas nosso empenho em participar disso tudo já faz com que as datas tenham um significado mais sincero do que o capitalismo nos faz pensar. Pelo menos nessas datas a gente acaba fazendo coisas boas pelos outros e por nós mesmos. É uma obrigação? Não é autêntico? Não importa. O efeito no outro pode ser legítimo, e só aí já valeu a pena. Pior seria se a gente não tivesse nem essas datas para tentar ser melhor.

Cara leitora, caro leitor (sou uma gentlewoman, mulheres primeiro!): espero que seu Natal tenha sido legal, que você não esteja achando tudo isso aí em cima muito utópico, que você não esteja lembrando do barraco que foi o almoço em família e queira apedrejar o monitor que mostra minhas palavras de esperança. Espero, sinceramente, que todos vocês tenham um ótimo fim de ano, e um ótimo começo de ano. E para provar que minha visão das festas talvez não esteja tão equivocada, acompanhem meu raciocínio: estou escrevendo um texto para o Digestivo Cultural; não conheço vocês pessoalmente; se não houvesse este veículo, não estaria desejando Boas Festas a vocês. Mesmo que meu motivo para estar escrevendo essas palavras não seja um afeto pessoal por qualquer um de vocês, ainda assim desejo, sinceramente, um Feliz Ano Novo a todos. E aí, não valeu a pena? Acho que votos de felicidade nunca vão ser demais.

Adriana Baggio
Curitiba, 27/12/2001

 

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