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Sexta-feira, 18/11/2011
Aula de Português I: texto X gramática
Marcelo Spalding

Inicio aqui uma série de dois ou três textos sobre o ensino da Língua Portuguesa, algo que tem deixado muito a desejar e provocado algumas polêmicas ao longo do ano, como o famigerado caso do livro do MEC. Na ocasião, o livro "Por uma Vida Melhor", da Coleção Viver, Aprender - adotado pelo Ministério da Educação (MEC) e distribuído pelo Programa Nacional do Livro Didático para a Educação de Jovens e Adultos (PNLD-EJA) a 484.195 alunos de 4.236 escolas, trazia trechos como:

"Você pode estar se perguntando: 'Mas eu posso falar 'os livro'?' Claro que pode. Mas fique atento, porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico (.) Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas."

À época muitos defenderam a postura do livro, outros o ensino absoluto do português padrão, mas a verdade é que alguém que tropece em ortografia, concordância e regência estará muito atrás no mercado de trabalho. Mais do que isso, a pobreza linguística causa problemas de interpretação e produção textual, impedindo que uma parcela significativa da população esteja plenamente informada e participe das decisões de nosso país (seja escrevendo artigos, redigindo leis e contratos ou enviando uma carta a uma autoridade).

Ocorre que o ensino da Língua Portuguesa nas escolas tem sido muito falho. Em parte porque não há uniformização: há instituições que privilegiam o texto, sua produção, leitura e interpretação, enquanto outras priorizam os aspectos gramaticais, por vezes tratados de forma descontextualizada. De fato, no Brasil, por um longo e tenebroso período aprendemos a decorar e memorizar regras e nomenclaturas (quem lembra da diferença de um adjunto adnominal para um complemento nominal, ou de uma oração coordenada sindética para uma assindética?). Por outro lado, hoje há professores que sequer mencionam a estrutura sintática da língua, alguns por opção didática (o que é respeitável) e outros porque sequer têm domínio desse complexo e fascinante conteúdo.

Particularmente, acredito que o ideal seja trabalhar com textos como objetivo, mas lidar, sim, com os aspectos técnicos da língua. Percebi que muitos dos meus alunos de primeiro semestre (leciono Língua Portuguesa para alunos de Direito, Administração e Sistemas da Informação), muitos mesmo, não sabem diferenciar um verbo de sua forma nominal, um adjetivo de um advérbio, não lembram o que é preposição, conjunção, interjeição, isso sem falar no absoluto esquecimento sobre o básico de sintaxe (sujeito, verbo, objeto, adjunto adverbial). Pergunto: como ensinar pontuação ou crase, por exemplo, para estes alunos, sem primeiro retomar esses aspectos técnicos, gramaticais?

Tal desconhecimento irá prejudicá-los até quando, fora dos bancos universitários, procurarem um livro sobre linguagem ou produção de texto, bem como uma gramática, e se depararem com dicas como: "transforme verbos em substantivos abstratos para dar coesão ao texto". No caso das gramáticas, lerão o seguinte: "objeto indireto é precedido de preposição". Aí o aluno coça a cabeça e se pergunta: "o que é mesmo preposição?".

Além disso, percebo que a própria interpretação de textos fica prejudicada quando, por exemplo, o leitor não sabe a diferença de um verbo no modo indicativo, subjuntivo ou imperativo, quando não consegue identificar o referente de determinado pronome ou o sujeito de determinado verbo (isso sem falar na compreensão de longos períodos subordinados ou construções na voz passiva).

Na verdade, para muitos professores de português a insuficiência do ensino escolar da matéria é ótima, pois cobram altos valores por cursos, grupos de estudo, oficinas e aulas particulares, especialmente cursos voltados para concursos públicos que, em geral, pedem exatamente o conhecimento técnico, sintático e gramatical do idioma. Exatamente como há 30 anos.

Alguns deputados, enquanto isso, preocupam-se com os estrangeirismos e propõem meia dúzia de leis populistas e ufanistas. Esquecem-se que um aluno da UFRGS, por exemplo, se forma em Jornalismo, História, Enfermagem e tantos outros cursos sem a necessidade de frequentar uma única disciplina obrigatória de Língua Portuguesa, algo que se repete de forma vergonhosa em diversas instituições particulares. No ensino básico, minha sobrinha formou-se ano passado em uma Escola Estadual de Porto Alegre e em pleno último ano de ensino a disciplina de Língua Portuguesa passou de seis para quatro períodos semanais, pois era preciso acomodar dois períodos de língua espanhola, que se somavam aos dois períodos de língua inglesa. Ou seja, às vésperas do vestibular, a escola subtraiu um terço da quantidade de aulas de língua portuguesa, igualando seu espaço ao ensino de língua estrangeira.

O problema é que como a língua é fundamental para o crescimento pessoal e profissional de qualquer cidadão, tal descaso amplia o fosso entre os que podem estudar e os que precisam estudar. Mais do que isso, como no Brasil a docência não é valorizada, são exatamente os que não conseguirem entrar nas faculdades de Medicina, Direito e tal é que farão as licenciaturas. E ensinarão a nossos jovens matemática, ciências, cidadania, língua portuguesa.


Marcelo Spalding
Porto Alegre, 18/11/2011

 

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