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Terça-feira, 7/2/2012
Cinco Sugestões a Autores de Ficção Científica
Duanne Ribeiro

Participei do processo de avaliação dos contos da antologia Ficção Científica do Brasil (FC do B) - Panorama 2010-2011. Foram 323 inscritos nesta terceira edição do concurso, dos quais 70 chegaram à análise por nós da comissão julgadora e 20 foram publicados. A partir da experiência, quero comentar sobre o que li e sobre o que seriam os problemas e as qualidades da nossa ficção científica.

Não que eu seja um especialista - são menos verdades e mais sugestões para discussão. Leia também "Sine Wave", meu conto selecionado para a segunda edição do FC do B (2008-2009).

1. Reviravolta Final
É batata: lá pelas tantas, descobrimos que nada é como parecia, uma informação nos faz ver toda a história sob outro ângulo, um segredo explica tudo o que não entendíamos; no canto, o escritor fica com um sorrisinho maroto de quem enganou o leitor. Você conhece o esquema - é o mesmo de filmes como O Sexto Sentido. Não incomoda por si, mas quando se está lendo uma série de contos, a estrutura repetida vai baixando as notas em cascata. Daí talvez surja uma boa regra: se o seu texto vai passar por uma seleção, qual a forma típíca a que muitos vão apelar? Evite-a.

Mesmo usando o esquema, alguns publicados criaram boas narrativas. Manoel Figueira, em "A Intervenção", brinca com as expectativas do leitor em relação ao próprio gênero - sem que nos leve a isso, posicionamos o enredo em um futuro idealizado, que nos acostumamos a imaginar, só para que o autor nos arranque dessa zona de conforto, mudando o eixo histórico. "Apotine Gratinado" faz o mesmo, de uma forma divertida, com algo de crônica de viagem. O prazer destes dois é que não se sustentam só na surpresa final; já "Obsoleto", de Antonio Junior, baseia quase toda sua força nisso, e nem é difícil de adivinhar logo de uma vez.

2. Não-Relativismo Histórico (e Galático)
São personagens do futuro, mas estranhamente seus pensamentos sobre a sociedade em que vivem são parecidíssimos com alguém contemporâneo ao leitor. Veem os valores compartilhados de sua época, adiantada séculos no tempo, pela ótica de um sujeito comum à época do autor; com uma nostalgia ou um choque, digamos, obsoletos. Possível? Sim. Mas me parece pouco - a resposta à "como ele pensa, sob tais condições?" se perde, e o que se ganha é um indivíduo do presente, apenas deslocado.

"Nulla in Mundo Pax Sincera", de R. Lovato, comete o mesmo "erro" de um modo variado; seu narrador, Sidera, é membro de uma civilização que "Calcula. Conta. Observa. Sente as entidades. Conclui. Mas não interfere", em escala interplanetária (feito o Vigia, da Marvel). Ele estuda, na Terra, o caso de um alguém que faz uso da Lei da Deletação, que permite aos pais matarem os filhos, mesmo crescidos, que os decepcionem. Sua conclusão, sem motivo plausível, é coroada por uma citação de Antonio Vivaldi.

O compositor humano alcançou prestígio em outras galáxias? O interlocutor de Sidera veria essa referência como elucidadora e precisa? Tudo parece mal montado.

3. O Conto como Panfleto
Esse é um clichê de tom moralista: define-se a "natureza humana" de alguma forma e pinta-se um futuro em que foi pervertida, frequentemente por conta do avanço tecnológico. Nós vimos elementos assim em O Demolidor, por exemplo. Sem cuidado, um desenvolvimento do tipo pode se tornar apenas uma parábola em defesa dos valores de agora. Um dos textos não-selecionados, "Inferno na Terra" (não sei o autor), narra a decadência social do mundo, que adota a clonagem, o aborto, a comunicação globalizada, o desarmamento de todas as ogivas nucleares (o que deixa as nações indefesas), até que resta, como último bastião da bondade humana, o Vaticano.

Lembra o texto de Henry Makow sobre um "culto satânico que governa o mundo". Ou seu artigo sobre como a biometria é um passo na direção do totalitarismo mundial. (Makow foi usado aqui no Brasil na última campanha presidencial, como escrevi.)

Ou seja, sem julgar o mérito das ideias, é um conto só panfletário. Denis Winston Brum cria um cenário similar com mais elegância em "Imperfeito". Sua protagonista trabalha em um empresa de engenharia genética, que produz bebês "sob medida". Algumas variáveis se intrometem nessa produção, gerando imperfeições. Se o comprador se desagrada, o produto - já vivo - é descartado. No limite, poderíamos tomar Brum como um panfleto - mas a atmosfera, os personagens - e uma possível autocrítica - dão ao texto um valor maior.

4. Humanos Versus Máquina
É uma variação mais específica do item anterior: no fundo, quer dizer que o que é humano é insubstituível pela tecnologia, por maior que sejam as capacidades técnicas; além disso, o que é próprio da humanidade teria um valor não superável pelo artificial. Alexandre Lobão segue o modelo em um thriller competente, "Asas", no qual todo um departamento policial está prestes a ser aposentado, trocado por um sistema computadorizado de investigação. Em meio às comemorações, um deles resolve checar por si um crime misterioso. Como se pode esperar, a sua perspicácia encontra o que máquina não pode analisar.

"A Inimaginável Materialização de Samira" me parece nascer de um conceito do tipo, mas não se aproxima do panfleto, e nos dá o assombro de um modo de vida muito diferente. As relações físicas foram restritas ao máximo; as pessoas interagem principalmente de maneira virtual, e as "desconexões" são "geralmente ilícitas". Nesse cenário, o sexo não é nunca um envolvimento carnal, mas um relacionamento intenso de conexões neurais. Samira, parceira do protagonista, se torna criminosa, parte do Movimento de Libertação do Sexo Natural. É também uma defesa oblíqua de um erotismo real (um conceito variável historicamente) - mas está além disso, pela qualidade da narração e por como descreve esse sexo neural.

A tensão entre o que é humano e o que é metahumano é ainda abordada superficialmente, no entanto. Em Eu, Robô, de Isaac Asimov, encontramos histórias que põem em cheque esse quê humano e nos dão um incomôdo real. Em um conto, o autor trata de um político que é acusado de ser robô (já indistinguíveis na aparência). As pessoas não aceitam essa candidatura, que seria "falsa" e perigosa, por suas supostas habilidades superiores. Noutro, fala do governo global realizado por supercomputadores, que gerem todas as sociedades com matemática precisa, atingindo paz e felicidade de maneira inalcançada pela humanidade.

5. Criatividade da Forma
"Como Jogar com Adversários Mais Fortes", de Carlos Abreu, e "Tiangwá e os Pequenos Guerreiros de Yoomandu-Açu", de Chico Pascoal, são os dois melhores textos da antologia. Além do interesse próprio do enredo, possuem um trabalho estilístico sofisticado.

Abreu narra uma história fragmentada, de cortes rápidos, como um videoclipe. Ele nos põe em um universo distópico, mais cruel e sombrio. Um mundo apinhado de gente e em que as corporações comerciais ganharam extrema importância (similar ao que criou Joe Sacco) e no qual o protagonista investiga um rapaz que conseguiu fugir do internato; de um jeito, ele descobre, muito peculiar. Já Pascoal nos mostra uma tribo indígena e sua relação milenar com alienígenas. O texto alia um coloquialismo ágil com uma linguagem regionalista, que remete aos países de língua espanhola na América e no sul do País.

Os conceitos não são inéditos; o modo de contar é particular. Essa tese, que pode ser vista nos demais itens da coluna em formas diferentes, ganha aqui dois outros sentidos: primeiro, é como as cenas da história são montadas; segundo, como as palavras são trabalhadas. De modo geral, foi esse meu principal critério, a guiar todas as avaliações que fiz.

Duanne Ribeiro
São Paulo, 7/2/2012

 

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