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Quarta-feira, 14/3/2012
Liberdade, de Franzen
Luiz Rebinski Junior

O romance Liberdade, de Jonathan Franzen, foi flagrado na companhia de Barack Obama e Oprah Winfrey, dois leitores que podem não entender muito de literatura, mas que ajudam qualquer escritor recém-saído de uma oficina literária a vender horrores. Mas esse não é o maior mérito do romanção de seiscentas páginas. Nem tampouco de ser "o resumo de uma época", como muitos estão dizendo. Franzen fez bem à literatura mais com a forma do que com o conteúdo de seu livro. O romance saiu pela culatra. Digo, a história. O que não era para ser, acabou sendo. Ou seja, a comportada prosa do rapaz de óculos de aros grossos, o queridinho da América, a voz do american way of life, tomou a frente da história que pretendia passar a limpo os acontecimentos da primeira década dos anos 2000.

Ninguém que tenha lido o romance deixou de notar que aquele que está sendo considerado "o livro do século" por alguns empolgados de plantão (o mesmo Guardian que achou Minha querida Sputnik, um romance meia-sola do japonês Haruki Murakami, "o melhor e mais instigante romance contemporâneo") é, realmente, o livro do século, mas do 19, no caso. Franzen resgatou o romance-mural de Tolstói e companhia, recheando-o com as pequenas e grandes picaretagens dos políticos de seu país. Mas o engraçado é que pouco se fala sobre como os Estados Unidos vendem sucata bélica aos países periféricos, uma das denúncias jornalísticas da prosa de Franzen. Aliás, a certa altura parece que há muito mais jornalismo do que literatura ali. A literatura é soterrada por uma montanha de informações que tornam o texto meio enfadonho e burocrático. Tá certo, não dá pra ser poético em seiscentas páginas, mas parece que Franzen abdicou de sua verve literária em benefício de uma história "bem amarrada", em que a trama é o que vale.

Mas a grande questão que Franzen, sem querer, incutiu na cabeça dos críticos é: como pode um romance complemente "normal" do ponto de vista da linguagem ser uma obra-prima, mesmo vindo depois de Kafka e Guimarães Rosa? O que está em jogo hoje na literatura? Não é preciso mais reinventar a literatura, como os escritores do século 20 imaginavam? Ou tudo já foi feito e temos que nos contentarmos mesmo em reciclar? Confesso que, mesmo sem saber, cometi o pior dos pecados que poderia cometer ao ler Liberdade: o li depois de me embrenhar em O som e a fúria, o grande livro de um dos mais inventivos autores que o século 20 produziu. Aí é sacanagem, disse-me um amigo. Como sou um leitor totalmente sem método, a situação me caiu no colo. Se fosse um pouquinho mais inteligente, não teria feito essa sequência, para o bem do senhor Franzen, que teve o azar de estar embaixo do senhor Faulkner na minha famigerada "pilha de livros a ler".

Claro, eu sei, as comparações são perniciosas à literatura. Mas o fato é que eu estava contaminado pela inventividade do senhor Faulkner, o que já me fez torcer o bigode para tudo mais comportado que me caísse nas mãos. Então não sou o leitor mais indicado para dizer qual é o real valor de Liberdade. Não estava muito interessado em saber como o americano médio vive hoje nos Estados Unidos, apesar de o romance de Faulkner falar bastante sobre o americano médio do começo do século 20.

Além do mais, as seiscentas páginas me parecem exageradas para contar a história de um triangulo amoroso que tem um final feliz. Aliás, o final da história me pareceu bastante com o que escrevem nossos novelistas (de TV): a mocinha se ferra bastante, trai, quase morre congelada, mas acaba nos braços de seu grande amor, que a acolhe perto da lareira.

O engraçado é que sempre abominei "experimentalismos" gratuitos na literatura. Sempre achei que literatura, em suma, é uma história bem contada. O que não quer dizer que a literatura tenha que ser careta e previsível. É possível ser inventivo e "literário" mesmo contando uma história aparentemente simples. E meu escritor-síntese deste pensamento é William Kennedy. Ironweed é de fazer qualquer aspirante a escritor querer desistir de escrever até mesmo bilhete para a mulher. Tudo está nos eixos ali: há poesia, ironia, tristeza e alegria. Ou seja, tudo que um texto literário deve ter. Ironweed é convencional e inventivo, realista e fantasioso, tudo na medida certa. E é exatamente disso que senti falta em Liberdade. Pegue um romanção brasileiro (um dos poucos que temos, concordo) como Viva o povo brasileiro. Ali há uma grande história, mas há também fantasia e realismo, medo e delírio, sonho e pesadelo. Com isso não estou dizendo que Franzen deveria escrever o Cem anos de solidão na América. Mas há pouca literatura em seu romance, é isso. Seus personagens são muito racionais, mesmo em seus momentos mais instáveis. Para mim, qualquer dos últimos romances fininhos, de cento e vinte páginas, de Philip Roth tem mais pegada literária do que Liberdade. Roth pode criar apenas um ou dois personagens, mas é certo que eles vão entrar profundamente na mente do leitor. Vão arrepiar os leitores com suas sensações. E isso não senti com nenhum dos personagens de Franzen, por mais que o escritor tenha escritor centenas de páginas sobre cada um deles. Nem mesmo o roqueirão, que tinha tudo para me cativar, foi capaz de me fazer franzir o cenho: seus feitos como herói maldito do rock davam sono. A coisa mais fantástica que ele fazia era comer groupies. Ou seja, um clichê do rock. Por que nenhum roqueiro tem azar com as mulheres ou é impotente?

Claro que estou destilando aqui meu veneno crítico. O livro de Franzen certamente não é tão ruim quanto estou pintando. Mas, acredite leitor, também não é nem a metade daquilo que estão falando por aí.

Luiz Rebinski Junior
Curitiba, 14/3/2012

 

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