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Quarta-feira, 26/12/2001
Os melhores votos, de uma cética
Daniela Sandler

Eu não acredito em ano novo. Todo dia, aliás, é fim-de-ano. Se o ano novo marca o momento em que a Terra completa em torno do Sol a volta que dura 365 dias, então a cada dia essa volta está sendo completada com relação ao mesmo dia do ano anterior. Em outras palavras, tudo depende do ponto da volta que escolhemos para marcar o início e a chegada. Houve uma época em que pensei que aniversários fossem os verdadeiros anos-novos - se é para contar de 365 em 365 dias, então a volta só se completa, para cada um de nós, no dia em que nascemos.

Mas hoje em dia nem em aniversário acredito mais. Em si mesma, a celebração das voltas, dos ciclos completos - tantos anos de vida, tantos meses de namoro, tantas décadas após uma vitória ou uma derrota - não significa nada mais que isso: marcação de tempo. No entanto, revestimos e impregnamos essas datas de uma espécie de aura, como se elas tivessem uma qualidade mágica, mística, que as fizesse diferentes dos demais dias e excepcionais em si mesmas.

Assim como em nossos aniversários nos sentimos especiais - merecedores de atenção, com uma certa obrigação de cumprir os votos de felicidades, ou deprimidos (seja pelas rugas, seja pela impossibilidade de ter um "feliz aniversário" só porque os outros o dizem) -, no ano novo somos tomados por uma inebriação coletiva, que parece ainda mais verdadeira e real porque é compartilhada por quase todo o mundo.

As horas desse dia estendido, vazando entre o 31 e o 1º, são removidas do curso cotidiano, como se não apenas marcassem o tempo, mas se estivessem fora dele. Nesse ponto de transição, que nos parece épico, decisivo (afinal, estamos testemunhando a "virada"), os eventos também ganham contornos acentuados. O primeiro bebê do ano, ao qual somos apresentados pela tevê; por contraste, a tragédia aumentada de infelicidades e azares (mas que dia para morrer!...)

Vestes novas

Acreditar que esse dia está fora do tempo é de certo modo um luxo para quem pode pôr de lado necessidades mais prementes. Afinal, nos casos extremos, contingências da vida se impõem e apagam a impressão de excepcionalidade. Imagino um paciente no hospital, conectado a aparelhos, em tratamento intensivo: o ritmo dos remédios, das máquinas, dos sinais vitais independe da efeméride; começa antes, continua depois, ao largo da contagem regressiva e do estouro dos fogos. Isso sim é tempo fora do tempo.

Claro, médicos e enfermeiras hão de celebrar - ou lamentar o plantão -, e, se o paciente estiver consciente, há de fazê-lo também. Assim como presos, fugitivos, soldados em batalha; pessoas que por algum motivo não têm condições materiais para festejar (talvez preocupações mais imediatas - fome, frio); gente que tem de trabalhar, guardas, jornalistas de plantão. Ainda que todos esses participem, com alegria ou pesar, da excitação coletiva, os fatos resistem à ficção da passagem do ano.

Tento entendê-la (a quebra de fé tem dessas coisas: esforço de analisar o que, em última análise, é irracional). A euforia com que chegamos ao dia 31, exaustos fisicamente pela maratona de compras e festas. Dizemos, no entanto, que estamos exaustos pelo ano, o ano velho, cansado, o ano já quase passado. Fazemos retrospectivas, as nossas individuais ecoadas pelas da mídia (ou seria o contrário?). Não quero nem ver, neste ano, a enxurrada de narrativas heróicas e monumentais sobre a primeira guerra do século, o terrorismo do novo milênio, o caos do país vizinho...

Repetimos o refrão: nossa, como passou rápido (ninguém reparou que todo mundo com mais de 10 anos sempre diz isso?). Pensamos como nossa vida mudou, ou não; comparamos o ano com anos prévios, fazendo saldos. E nos desnudamos do ano velho como quem se livra de uma roupa suja, carregada a contragosto por mais tempo que o desejado: finalmente temos a permissão de jogá-la fora e envergar veste nova e fresca. Daí nossa animação: a tal chance de começar do zero prometendo apagar nossos erros, como personagens de um videogame com mais de uma vida, renováveis a cada novo jogo. Esquecer os desagrados do ano passado, dar voz aos nossos desejos (em forma de promessas), e ter a impressão, momentânea que seja, de vida renovada: a ilusão de "imortalidade", como se nós mesmos estivéssemos fora do tempo. Não admira que fiquemos eufóricos, excitados, histéricos.

Depressão de fim-de-ano

Tudo isso é celebrado em massa - e, como se para nos assegurar da importância da data, tevês e jornais propagam imagens do revéillon em Paris, na Times Square, em Copacabana, dando, por meio da sedução da "notícia", força de fato à virada do ano. A força de fato, aliás, vem primeiro da dimensão coletiva. Festejar a entrada do ano com um pequeno jantar em casa nunca parece ter o mesmo impacto, a mesma validade da celebração em grupo, a multidão olhando os fogos e trocando abraços. É como se o ano só entrasse ali, na praia, na praça. Para quem passa a data dormindo, o ano não entra, mas se instala sem fanfarra e já um pouquinho gasto.

Digo isso para frisar, se é que já não me tornei repetitiva, o caráter construído, ficcional do ano novo, e, por tabela, de outras festividades, religiosas ou não. Ao participarmos dessas comemorações, nós nos ligamos - religamos (religare, religião) - ao resto do mundo. Quando o fazemos, seguimos rituais - a roupa, a comida, o brinde, os cumprimentos (para não falar nas sete ondinhas). Nossa emoção ao fazer tudo isso - que, não duvido, é sincera - é um ato de . Não é à toa que falei de religião. Para tomar parte, é preciso acreditar.

Até mesmo quando pensamos rejeitar a atmosfera alucinada do fim-de-ano endossamos sua validade. A famosa depressão de fim-de-ano que perturba quem não consegue "entrar no clima" já virou, ela também, um dos rituais da época. Afinal, se não ligássemos para a euforia geral, não ficaríamos deprimidos por não fazer parte dela.

Mas não quero estragar a festa

Não me entendam errado - não falo em tom de reprovação ou denúncia. Minha intenção não é desmascarar "mentiras", muito menos estragar a festa. Não quero que as pessoas deixem de comemorar - não quero eu deixar de comemorar. Também me emociono, e por muito menos, aliás.

Essas ficções, e inúmeras outras, são necessárias, ou talvez melhor dizendo inevitáveis. E, apesar do caráter "construído" - o que as faz contingentes ao tempo, ao contexto, mutáveis -, não são menos verdadeiras, ou menos humanas. Pois foram inventadas por nós (nossos antepassados), e somos nós que, coletivamente, as reinventamos e transformamos. Se há, eu confesso, muita coisa que me incomoda na loucura coletiva desta época do ano, há também muito o que admirar, muito o que aprender sobre nós ou nossa cultura, e muito com que se comover.

Serei mais clara (espero) usando uma estória, uma cena de filme. O filme, Trem da Vida, é protagonizado por uma comunidade judaica que se "autodeporta" num trem falso para fugir da perseguição nazista. Há um momento em que os ânimos se exaltam e a comunidade quase se desmancha em briga ao discutir a existência, ou não, de Deus. A discussão ocorre na celebração do Shabat. Ora, o Shabat é um ritual que festeja Deus e o dia de seu descanso - ou seja, saber se Deus é real ou fictício é central para que o rito prossiga. Mas as convicções pró e contra são igualmente fortes (e cegas), e o Shabat ameaça virar guerra pela discordância.

Entra na discussão o visionário Shlomo, o "louco da aldeia" - de fato, seu líder espiritual, que concebe e arquiteta a fuga mirabolante. Shlomo, na tradição dramática do bobo-da-corte e do arlequim, é o personagem mais lúcido, que tem coragem de desnudar a verdade por não estar preso a freios sociais. Seu discurso, que silencia a cizânia e serve de prece para o Shabat, é um dos momentos mais tocantes - e universais - do filme: "Deus existe, Deus não existe. O que importa? Perguntem se o homem existe. Foi o homem quem escreveu a bíblia. O homem, filho de Deus, inventou Deus para inventar a si mesmo."

Desejo que nós possamos nos livrar das falsas questões e das discórdias inúteis, e que possamos celebrar a nós mesmos ainda que (imperfeitos que somos) não o façamos todos os dias; ainda que precisemos de data, hora e traje: Feliz Ano Novo.

Daniela Sandler
São Paulo, 26/12/2001

 

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