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Quinta-feira, 12/4/2012
Ode ao outono
Elisa Andrade Buzzo


Alfons Mucha: "Les saisons" (Automne, 1896)

Dizem que o lado bom do outono é não chegar suado ao trabalho depois de pegar o metrô cheio, aproveitar uma temperatura mais amena, optar indistintamente entre uma inútil blusa de manga comprida e uma regata. Alguns habitantes do hemisfério norte podem se regozijar em usufruir de um belíssimo tapete de folhas multicores, ainda que temendo o que está por vir: um inverno glacial, a retomada do aquecimento central, de uma infinidade de acessórios que, quando necessários, de empolgantes e fashion pouco têm. Falemos do outono, o primo esquecido da primavera, que mal começou por estas bandas e o paulistano já sente na pele.

Nada como um trenchcoat para não passar um dia mal vestido, num desanimante tira e põe de roupa? Errado, do lado debaixo do Equador tudo que passa abaixo da cintura e não é leve soa meio desconcertante. Vivemos como D. João VI e sua trupe, nos travestindo num sonho de moda europeia. Séculos já se passaram e ainda estamos nos adaptando em termos de vestimentas ao clima tropical de altitude.

Há algo de sisudo no outono, esse interstício entre calor e frialdade. Não terá algo a ver com a minha própria personalidade? Este não sei quê dúbio de folha alvoroçada no momento do voo e dolorosa crocância quando pisada. Serei eu um pouco assim, outonal, oscilando entre um polo aconchegante e reluzente, desmembrando-me em nervuras esparsas?

O outono europeu não deixa de ter um apelo a mais, uma demarcação que realmente faz parte da vida das pessoas. Caem tão bem as estações do ano nas voluptuosas figuras femininas de Mucha! Recorro a um de seus outonos e não me surpreendo com suas mãos carregadas de uvas - o outono é a época da colheita. A mulher envolta numa diáfana bata oferta aos olhos do observador suas curvas, ela não se entrega totalmente como a musa do verão, não tem um retraimento quase pueril da musa da primavera, nem se encurva sobre si mesma como a do inverno: a musa outonal de olhar misterioso dispõe seu corpo curvo num convite obtuso, venha, quem sabe aqui encontrarás fertilidade, com sorte, amor. Muito próspero e sugestivo este outono Art Nouveau...

O prenúncio natural do inverno, vejo em retrospecto pela janela, duas fileiras de árvores de caule cinza, plantadas geometricamente na grande avenida. Quando a última folha se desgarrar do conjunto de galhos secos que se transformou sua copa, ele é chegado. Ainda, antes, o gramado do jardim público será recoberto por fantástica camada de folhas, cujas cores se codificam numa mistura entre o marrom, o verde, o cinza, o laranja e o avermelhado. Que sensação de outono verdadeiro sentir a lentidão crespa das folhas secas, pisar nessa camada descompactada cuja finura protege e oculta a vida. Os cisnes então logo serão retirados dos lagos, em algumas regiões, muitos irão congelar. E fica difícil acreditar que, num futuro nem tão distante assim, aquelas mesmas árvores por completo despeladas irão se reaver em verde pálido, mas que é o verde do recomeço deles.

Este meu outono, um oito, um outro... Que simpatia tenho por esta palavra obscura, de algo marrom e fresco, de cor luminosa e terrosa. Todas as coleções da Side Walk são eternamente outonais: um tecido de lavagem desgastada, um tie-dye, um verde musgo, um azul intenso, um vinho desgastado, um cinza queimado de secura úmida e vulcânica... E as sensações corporais se pautam pelo o que o ambiente e as estações nos propõem. Até qual medida seremos forjados pelo clima? e a moda resulta em seu rol de coleções, que aqui até se juntam em outono-inverno de tão frágeis e ligadas. Saudades das demarcações climáticas, de um tempo de degraus facilmente identificáveis.

Eu, sem me ater às tendências de cores para esta estação de 2012, e me esquecendo da chegada do outono, me apego no momento em que vejo a uma cor indescritível numa blusa. É como se eu sempre tivesse gostado dela, como se ela estivesse há tempos apartada e agora se endereçasse a mim. Sim, esta cor tem a tonalidade de uma folha em especial - a síntese de um momento passado -, é como se ela tivesse outonalmente amarelecido num álbum de retratos, mas estivesse ali, palpitando (apesar de despegada do galho, ela é quente e bela), prestes a se inflar de vigor.

Pois estamos entre o desbunde do verão e a severidade do inverno, vento cortante embebido em calor supremo. Que meio termo empolgante, que vida em suspenso! Pois não é possível acreditar que agora é tempo de se escolher entre um lado e outro? Se eu quero ambos e, nem mais um do que outro, todos, por que não ficar entre, entregue aos melhores pontos? Assim é este tempo findo, o feliz e inconsequente outono.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 12/4/2012

 

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