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Segunda-feira, 9/4/2012
Millôr desde a escola, e pela vida afora
Fernando Lago

Vocês não podem imaginar com que maneira inusitada eu fui conhecer a obra do Millôr. Não foi na Veja, nem n'O Cruzeiro (até porque eu nem era nascido na época dessa memorável revista), nem na TV, nem na internet ou através de postagens aleatórias de suas frases nas redes sociais. Li Millôr Fernandes pela primeira vez nas páginas de um livro didático do ensino fundamental, da nossa rede pública de educação. Acreditam?

Se um pesquisador perguntar para um grupo de pessoas que tenham estudado ensino médio ou fundamental nos anos 90 se chegaram a conhecer pelo menos um texto do Millôr é bem provável que tabulará uma bela percentagem de pessoas que afirmarão nunca ter lido sequer uma cronicazinha, um poemeuzinho que seja, uma frasezinha qualquer do mestre. Eu, entretanto, acho muito difícil que, nos vaivéns dos livros didáticos, não tenha aparecido ao menos uma das imponentes manifestações da genialidade do Guru do Méier na vida destes estudantes.

Durante anos me deliciei com vários textos millorianos nas páginas dos livros didáticos. Crônicas, humorísticos, cartuns, frases... Quase sempre tinha ― mesmo nos níveis escolares menores: releitura de fábulas e contos de fadas, uma das coisas mais fascinantes na obra do Millôr.

Posso dizer que acompanhei praticamente três gerações de livros didáticos: na pré-escola, quando eu próprio ainda não tinha livros e lia os dos meus irmãos mais velhos ― interior do interior do interior, imagina a dificuldade de se comprar um livro, acabava apelando pros didáticos mesmo; na minha própria vida escolar, com os livros que eu então já recebia ― às vezes em quantidades tão ínfimas que precisavam ser divididos por duplas, diga-se de passagem; e, enfim, quando já me despedia dos anos escolares, os da minha irmã mais nova.

Agora, trabalhando na área de Educação, posso ter a oportunidade de acompanhar mais uma geração, aguardemos.

Mas por que estou dizendo isso? É que, dos livros que meus irmãos mais velhos usaram até os utilizados pela minha irmã mais nova, parece-me haver certa infantilização na linguagem e no tratamento das situações cotidianas. Não será muito surpreendente se os textos deliciosos do Millôr não compuserem mais a lista de textos utilizados no estudo da língua portuguesa no nosso país.

Note-se que esta não é uma afirmação generalizada: livros didáticos existem aos montes e de muitas editoras e autores diferentes. Esta portanto é uma análise sem amplitude e que compreende apenas os livros a que tive acesso enquanto estudante. Tenho visto o esforço por parte de algumas ONGs para melhorar a qualidade dos livros didáticos e a própria forma de escolhê-los também pode ser considerada um avanço no âmbito da democracia. Mas, enfim, este não é o objeto deste artigo que, como o título sugere, é sobre o Millôr.

Então falemos do Millôr...

Foram necessariamente os livros didáticos alheios que me trouxeram as maiores risadas e exclamações de "genial, genial!" pelos textos de Millôr Fernandes. Alheios porque os que diretamente vinham a mim eram pouco explorados. Quando eu pegava um livro didático de outra pessoa pra ler, lia com gosto, saboreando cada texto. E foi assim que fui descobrindo os provérbios renovados, as novas versões (e morais) para as fábulas ― aquele jeitão de escrever que parece rir da cara de quem esta lendo, como se as letras dissessem: "você pensa que eu vou terminar assim e eu termino assado!"

Só fui mesmo comprar um livro do Mestre quando já estava na faculdade. Certa feita, entrando numa livraria em Salvador (olha, mãe, eu na capital!), bati o olho num livro bonito na prateleira e, ao ver o nome do autor, falei com tom de eureka: "Mas esse cara! Esse cara é massa! Leio desde criança!" (notem que ser "massa" na boca de um baiano é um elogio indefinível).

Daí pra diante foi como se um mundo totalmente "milloriano" se abrisse à minha frente: passei do livro ao site, do site ao Twitter, do Twitter fiz um retornozinho descobrindo um disco de vinil com textos do Millôr nas vozes de Miele, Fernanda Montenegro, entre outros. E assim vou: admirando o Guru num casamento da modernidade com o clássico ― lendo-o nos livros de papel e nas geniais atualizações de seu perfil nas redes sociais. E reparem: retuitando, compartilhando, curtindo... Não é maravilhoso?!

Na internet ou na revista, no Cruzeiro ou no Pasquim, no vinil ou na TV, Millôr Fernandes consegue encantar, desencantar, provocar e até consegue deixar a gente com raiva, de vez em quando. Escrevendo, Millôr recria o mundo, reconta histórias, versificava em (re)verso, em contra-verso. Por ser tamanho, não há rótulos que o definam: Millôr é Millôr, simplesmente.

Podem existir outros humoristas que renovem os ditados populares com palavras eruditas; podem existir outros cronistas que recontem as fábulas e os contos infantis; podem existir outros escritores que inventem fábulas fabulosas; podem existir outros tradutores de Shakespeare e pode até existir quem crie peças que tenham um só ato, uma só cena, um só cenário. Mas alguém que faça tudo isso ao mesmo tempo? Difícil... "É, não se fazem millores como antigamente." E acho que não farão mais...

Fernando Lago
Teixeira de Freitas, 9/4/2012

 

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