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Quinta-feira, 24/5/2012
Liberdade!
Elisa Andrade Buzzo


foto: Sissy Eiko

A primeira daquele pelotão de sentinelas espreita timidamente a Rua da Glória, a cabecinha branca pendida em eterna reverência oriental. Pois é ali, a partir daquela luminária vermelha, que começa a Liberdade? Talvez sim, talvez não, mas depois do ônibus contornar a Praça João Mendes e deixar para trás o Largo Sete de Abril é lá, numa esquina precisa, que eu vislumbro esse início em cor diversificado, essa separação simbólica do Centro Velho e do bairro da Liberdade, representado pelas luminárias, ainda acesas num amanhecer outonal.

Que sensação de pertencer a uma São Paulo retirada no tempo, de desalento e luz mortiça é caminhar na calada da noite por suas ruas, as luminárias redondas dispostas em um enxame luminescente, em suas ladeiras suaves, iridescendo os sorrisos na Rua dos Estudantes, na Galvão Bueno ou na Thomaz Gonzaga, quando as pessoas saem de seus cursos, de seus jantares amigáveis ou encontros, como seres voadores dispersando-se, encontrando seu caminho diante de tantas combinações possíveis. Como que caminhamos à claridade de um céu noturno e profundo num distanciamento encantado: é esta cidade a de hoje ou a de ontem? Ruas de paralelepípedos estridulando, Álvares de Azevedo poetizando a lua, tantos caminhos de passagens já feitos e refeitos, e então mentalmente nos beliscamos para acordarmos desse mundo e cairmos dentro dele mesmo, embora em diversa arquitetura.

Passeei pouquíssimas vezes pela Liberdade nas décadas de 1980 e 90. Meu coração infantil se surpreendeu com a paisagem e logo compreendeu que aquele era um local diferente, na época talvez mais Japão do que Brasil, e que, ao mesmo tempo em que ele me pertencia e eu podia tão rápido chegar perto dele, eu não dizia respeito àquele mundo distanciado de mim: um peixe fora d'água. Havia uma grande multidão de pedestres e, dentro dela, muitos rostos orientais, rostos sem expressão e rápidos, bancas de jornais com títulos ininteligíveis e papel colorido. No final das contas aquele era um lugar passageiro, onde a mãe resolvia algumas coisas e eu podia comprar bonitos papéis importados para dobraduras.

Agora, estando todos os dias na Liberdade, eu tive de fazer uma aproximação real nos arredores. Quando pela manhã saímos esplendorosos pela porta do McDonald's com um croissant de presunto e queijo e atravessamos a Avenida da Liberdade − alheios à imagem cinematográfica da abertura de Nine to Five (1981) em que poderíamos ser inseridos −, somos qualquer um, um estudante, um assalariado, um advogado, e assim, cheios de leitura e labor, nos juntamos ao cardume que oscila na estação São Joaquim do metrô.

No início da noite, hordas de estudantes invadem suas calçadas e os ambulantes os aguardam, mudos e expectantes. Uma senhorinha e suas bugigangas ao rumor do vento. Discreta súplica é a do vendedor de relógios falsificados, tão negro quanto a noite. Um chinês bem-apessoado vende de aventais brancos a roupinhas de cachorro, estendidas como tapetes de pele rara. Os bolivianos e seus cachecóis de tecidinho, e os hippies, com brincos, colares e esculturas de madeira. Mas o sucesso fica mesmo por conta das banquinhas de tapioca, pastel, frutas, churrasco, batata palito frita na hora, milho, sanduíche natural... é a festa da comida de rua, que na hora do almoço contempla açaí e gelinho para as crianças na saída da escola.

Um bairro residencial, mas ao mesmo tempo com jeito de comércio popular, comércio ambulante e oriental, centros hospitalares e uma chusma de estudantes de todos os graus. Sem contar os restaurantes e as placas que nos deixam como analfabetos em nossa própria pátria, e as igrejas, os templos budistas. Da bela Igreja Santa Cruz dos Enforcados e seu fogaréu de velas acesas nos vêm a lembrança de almas sentenciadas. Em meados do século XIX, palco de aplicação da pena de morte por enforcamento na cidade, o antigo Largo da Forca se intitula com singeleza Praça da Liberdade. Embrenha-se pelas ruas e lá estão, do período pós-escravatura, esplêndidos casarões, casebres, já convertidos em repúblicas, cortiços, moradias improvisadas. Nada é muito habitável na Liberdade, há entulho, lixo aberto e revirado, mas algo persiste e, de alguma forma, se transforma em local de moradia ou trabalho.

Os bairros, então, se ligam, e de repente uma área de transição invisível nos leva de um a outro. De qual substância é feita essa área limítrofe, embutida como que ocasionalmente entre os prédios, os mendigos, os bares? E da sucessão de erros e acertos desse lugar de pontos tão díspares na história - liberdade e morte -, tão opostos em sua essência que acabam se encontrando para um dar ao outro o sentido de sua existência, encontramo-nos com nada mais do que ele mesmo em comum e sua capacidade de aproximar mundos. Os números dos logradouros bem sabem onde começa e termina um subdistrito; os modos do povo delineiam o bairro por sensação e apego − um cheiro de tempura, uma vela acesa, um passeio proibido. E cá estamos nós, como que momentaneamente enclausurados nesse dia a dia de Liberdade!

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 24/5/2012

 

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