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Quinta-feira, 14/6/2012
Ao Sul da Liberdade
Vicente Escudero



Os passageiros examinavam com desinteresse o cubículo, esperando que a viagem com aquele sujeito desconhecido acabasse antes de descerem em seus andares. Nosso homem saiu da cabine empurrando o carrinho dos pintores e caminhou pelo corredor, deixando para trás o elevador que se fechou e sacudiu, partindo para o próximo andar. Entrou no escritório. Os passageiros ainda viajavam, tentando controlar a imaginação com as preocupações do dia. A solidão era dividida em partes iguais entre todos os trabalhadores do maior prédio cravado no centro de Pyongyang; uma pessoa poderia passar um dia inteiro em qualquer das salas sem perceber a chegada da noite. Os passageiros, aos poucos, desembarcaram em diferentes andares. Logo notariam que a incômoda presença não retornaria. Nosso homem caminhava entre os móveis do escritório abrindo gavetas e caixas, desarrumando papéis, procurando o arquivo com documentos contendo sua verdadeira identidade e de sua família, o conjunto de dados do governo que lhe atribuíam o status de criminoso pela prática de espionagem e traição na venda de informações confidenciais para o governo da Coreia do Sul, sobre o posicionamento militar do exército vermelho na Linha de Demarcação Militar. Suas pernas e mãos movimentavam-se em todos os sentidos, tocando suavemente cada móvel, cada objeto, na tentativa de revelar compartimentos escondidos da sala. A porta da entrada abriu-se. Escondido embaixo de uma das mesas da recepção, nosso homem acompanhou as pernas de uma mulher se movimentando com cuidado pelos dois ambientes do escritório, evitando pisar nos papéis, desviando da mobília revirada e analisando cada centímetro da desorganização. A atenção da invasora parecia inesgotável e preocuparia nosso homem se ele não estivesse ocupado com a descoberta de um compartimento secreto atrás de uma gaveta da mesa, onde encontrou o arquivo e um disco rígido marcado com uma etiqueta contendo "Vigilância (janeiro - abril)". As pernas femininas se flexionaram de repente, seus joelhos tocaram o chão e o rosto de uma das recepcionistas do edifício revelou-se, aterrorizado. Nosso homem foi descoberto vasculhando a sala. A funcionária, desesperada, arrastou-se até conseguir se levantar e fugiu em disparada pelo corredor, alcançando a escada de emergência depois de apenas acionar o interruptor do elevador. Nosso homem se desencaixou da mesa, tirou o pesado macacão de pintor que incomodou os passageiros do elevador nos meses enquanto durou seu disfarce, algemou-se à pasta com os documentos e correu para a escada, em sentido oposto á recepcionista, tentando alcançar a cobertura do edifício. O barulho de um helicóptero causava a trepidação das janelas. Nosso homem saltava os degraus carregando a garantia de um futuro anônimo. Mais quatro andares e voaria para a fuga. Um policial tentou interceptá-lo ao encontrá-lo no último andar, assustado com a figura do pintor vestido com um colete à prova de balas e preso a uma pasta, correndo pela escada de incêndio da sede do Serviço Secreto da Coreia do Norte. Nosso homem não tomou conhecimento do obstáculo, neutralizado com um chute mortífero no peito. O barulho das hélices na cobertura do edifício era insuportável. A céu aberto, correu contra o vento artificial do helicóptero e antes de embarcar avistou o horizonte. Recordou-se da imagem dos campos de trabalho forçado, seu irmão envelhecendo anos em segundos na sequência de cada golpe da enxada na terra seca. A poeira que se levantava na lembrança misturou-se ao vento da cobertura, separando como uma cortina a liberdade da fuga da prisão imutável do passado.

Nosso homem encontrou-se com o presente quando acordou e seus olhos registraram o dia vinte e cinco de junho de 2012. Passageiro de um ônibus em movimento, sentava-se ao lado de uma das janelas.

O homem que havia desembarcado em Pyongyang chamava-se Kwang Ho e era funcionário aposentado da usina nuclear Kori Número Um, localizada no litoral da cidade de Busan, da Coreia do Sul. Fora empregado ao lado de seu irmão, Dae-Hyun, e outras crianças, na indústria siderúrgica que alimentou a Guerra da Coreia na década de 1950. Fugindo das privações e temores do período, seus pais tentaram escapar com a família para a China, atravessando o território da Coreia do Norte, mas acabaram presos com passaportes falsos, durante a estadia na casa de um primo. A memória de Kwang Ho, surda aos gritos do remorso, apagou as imagens da violência obrigatória praticada pelos soldados contra seus pais, mortos para dar lugar aos filhos no ônibus destinado ao campo de concentração. E foi neste último dia da Guerra que o pior aconteceu.

A ficção é impiedosa com as fraquezas do caráter. Transportados lado a lado num ônibus com pouca vigilância, Kwang Ho aproveitou-se de uma longa parada e fugiu correndo em direção a uma floresta. Antes de desaparecer pelo labirinto desconhecido, as lágrimas de seu irmão acorrentado no interior do ônibus revelaram- se no negativo de sua consciência. Dias depois acabou resgatado por um comboio do exército americano em retirada à Coreia do Sul. Dae-Hyun desapareceu.

Kwang Ho dormiu durante trinta anos até descobrir a resiliência de seu irmão através de uma carta clandestina, recebida na embaixada da China localizada em Seul. Infâncias humildes constroem o caráter. A juventude vivida a partir dos quinze anos na cultura da liberdade fez de Kwan Ho um homem confiante em atos heroicos. Uma linha traçada no chão seria capaz de impedi-lo de salvar o irmão?

O ônibus havia partido de Pyongyang e retornava a Seul. Kwang Ho tinha acabado de acordar quando sentiu duas coisas. Não seria capaz de mudar o futuro de Dae-Hyun sem justificar a própria morte, se tentasse libertá-lo, diante do poder dos soldados norte-coreanos que monitoraram seu reencontro com ele em Pyongyang, organizado pelo governo das Coreias. A segunda, que o sacrifício seria a reprodução dos erros do passado, o abandono definitivo da companhia do irmão. Olhando para as mãos frágeis e enrugadas, Kwang Ho sentiu o esgotamento da disposição transformar-se em sono.

Adormeceu outras vezes durante a viagem de volta, esvaziando o ímpeto da virtude em lembranças de filmes de ação. Kwang Ho sentia uma felicidade serena e respirava a liberdade do presente quando decidiu, ainda no ônibus, que aproveitaria os poucos anos que restavam da vida como o início de uma pequena aventura. Traçou planos menos ambiciosos. Imaginou o novo reencontro com Dae-Hyun, no ano seguinte.

Vicente Escudero
Campinas, 14/6/2012

 

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