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Quarta-feira, 27/6/2012
'O sal da terra': um filme à margem
Humberto Pereira da Silva

"O sal da terra", filme americano de 1954, foi lançado recentemente em DVD pela Platina Filmes. Por aqui, o lançamento não mereceu destaque nos cadernos de cultura dos principais jornais. Para a maioria das pessoas esse filme, apesar da celeuma quando de seu lançamento, permanece desconhecido. As razões são as mais variadas. Algumas indicações serão sugeridas adiante.

Antes, porém, por que "O sal da terra" gerou celeuma em 1954? Lembremos que os anos 50 são marcados pela Guerra Fria e, nos EUA, pelo macarthismo e a lista negra de artistas identificados com a ideologia comunista. Nesse período de "caça às bruxas", figuram diretores, e atores hollywoodianos importantes. O caso mais famoso é o do cineasta Elia Kazan, que, convocado a depor, teria delatado alguns de seus colegas. É nesse momento que surge "O sal da terra", exibido no mesmo ano que "Sindicato de Ladrões", de Kazan, e, como este, trata das condições de trabalho num ambiente de tensão.

Enquanto "Sindicato de Ladrões" aborda a corrupção e a delação entre estivadores, "O sal da terra" tem como foco uma greve de mineiros numa cidade do Novo México. Na trama, as condições de vida e de trabalho impostas pelos encarregados da mina. No centro da narrativa, um casal de origem hispânica. O foco de tensão é a firme determinação do marido de impedir que sua mulher se envolva no encaminhamento da greve. No entanto, ele enfrenta da parte dela forte determinação para, com outras companheiras, participar do movimento grevista. Mas o que se torna o ponto dramático do filme é o tenso e amargo conflito entre os membros do próprio sindicato. Em pauta, a questão da igualdade de expressão e participação entre homens e mulheres. É nesse horizonte que Michael Wilson, o diretor, matiza o drama pessoal e as injunções coletivas numa situação que separa opressores e oprimidos.

Concebido num ambiente de perseguição àqueles que estariam traindo valores americanos, "O sal da terra" foi rapidamente identificado como filme comunista em pleno macarthismo. A se imaginar, portanto, os mais diversos problemas que enfrentou para sua realização. Rosaura Revueltas, a atriz mexicana que interpreta o papel principal, foi presa durante a realização do filme. A organização que o patrocinou, A Internation Union of Mine, Mill and Smeller Workers foi expulsa do Congresso das Organizações Industriais sob a acusação de alinhamento com a extrema esquerda.

Com esses ingredientes, ficam algumas perguntas sobre o porquê de esse filme não ter a atenção de tantos que ocupam críticos e espaço dos principais cadernos de cultura: Kazan até hoje gera controvérsia, quando é lembrada sua atuação à época. Uma primeira sugestão é sobre seu caráter propagandístico. Ou, de outra forma, sua mensagem ideológica. Se seguirmos a recomendação de Hegel, o valor de uma obra de arte não se impõe em função de seu propósito educativo, ou de fábula moral e política. Se assim for entendido, o problema de "O sal da terra" estaria no fato de que seu propósito primeiro não seria o de se apresentar como uma obra artística conforme os cânones burgueses (o mesmo não se pode dizer de "Sindicato de Ladrões", daí sua fortuna crítica). O valor do filme, com isso, ficaria confinado à mensagem. Portanto, antes de uma obra de arte, um panfleto concebido com a finalidade de despertar a consciência para uma realidade social ou política.

Assim sendo, nos termos de Lukács, uma obra orgânica, na contramão, portanto, das inovações formais da estética cinematográfica em voga. "O sal da terra", então, deveria ser visto ao lado de filmes do Realismo Socialista nos anos stalinistas. Sua força estaria na mensagem, por isso, não se coloca em nenhum momento que se sirva para entreter. Ocorre que se trata de um filme americano, inevitável, pois, que se apresente o problema do público a que se destina. A esse respeito, um problema similar com a recepção pela classe média do cinema brasileiro. O público de classe média que vai ao cinema, em geral o concebe como lugar de lazer e não para incursões sociológicas e políticas. "O sal da terra", com isso, sofreria do clichê que identifica muitos filmes que carregam mensagem política ou ideológica ao chamado filme de tese.

Esse clichê carrega no fundo a questão da divisão de classes e a manipulação ideológica sobre o que separa obra de arte e entretenimento. Na medida em que esses temas não podem ser desprezados, "O sal da terra" deixa questões que precisam ser consideradas. Se seguirmos Hegel, não precisamos pensá-lo a partir de seu conteúdo, mas se reflete o espírito da época. Ao deslocarmos o foco da questão, é difícil imaginar que não espelhe os conflitos do período. Ao lado do macarthismo, os anos 50 são também aqueles em que despontam os movimentos pelos direitos civis e o movimento feminista. Nesse sentido específico, trata-se de um filme premonitório.

Outra questão diz respeito ao público alvo. Na mesma medida em não se propõe como filme para lazer, "O sal da terra" segue uma narrativa clássica, com todas as concessões dramáticas encontradas em qualquer filme para entretenimento. Ou seja, um filme didático, centrado no drama pessoal, com uma caracterização de personagens que acentuam maniqueísmos. A narrativa de "O sal da terra" não escapa ao padrão de filme americano que separa mocinhos e bandidos. Não há ousadia formal que o emularia ao neorrealismo italiano ou, mesmo, aos novos cinemas emergentes em países como Polônia, Hungria e o Brasil com o Cinema Novo. Só que, aqui, a identificação se torna difícil, num ambiente ideológico adverso, caso, das sociedades americana e brasileira.

Ao optar pela convenção narrativa, "O sal da terra" ficou à margem dos debates sobre cinema em voga na época. Além disso, sua mensagem, em função da forte manipulação ideológica na indústria cultural, não teve apelo para superar problemas de divulgação e distribuição e se impor num cenário de forte polarização. Essas questões, como se percebe com seu recente lançamento em DVD, se refletem na pouca atenção dada pela crítica atual.

As questões destacada aqui, no entanto, realçam a importância de pensar o cinema para além de valores artísticos e de entretenimento. "O sal da terra" é um filme que, hoje, merece ser visto e discutido, mesmo que a ele não seja dada a etiqueta de cult movie. Isso porque um filme oferece muito mais do que imagens que simplesmente agradam, desagradam ou rompem convenções formais. Fora da indústria cultural e do metiê cult, "O sal da terra" deriva à margem e, sem ser visto, traz à tona o problema da manipulação ideológica externa às suas imagens.

Humberto Pereira da Silva
São Paulo, 27/6/2012

 

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