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Quinta-feira, 19/7/2012
A princesa insípida e o caçador
Carla Ceres

O filme Branca de Neve e o Caçador (Snow White and the Huntsman) é um fenômeno digno de estudo. Consegue manter uma plateia adolescente, portadora de celulares, em relativo silêncio. Os trailers com cenas de batalhas, efeitos especiais e a beleza seminua de Charlize Theron atraem os garotos da mesma forma que a promessa de uma história de amor encanta as meninas.

Parte de seu sucesso se deve à escolha das atrizes. A feiticeira Charlize Theron, imbatível em termos de beleza, tem prática em deixar-se enfear por maquiadores, para ressurgir terrivelmente bela. A Branca de Neve Kristen Stewart, com um rosto nada especial e expressão de asmática, fica ainda pior com os cabelos presos, que evidenciam as orelhas de abano.

Parece um erro na distribuição de papéis, uma Branca de Neve mais feia do que a madrasta. Acontece que a história sofreu adaptações para se adequar ao público jovem, que procura heróis com os quais consiga identificar-se e aos quais possa, ainda que hipoteticamente, superar. Nenhuma jovem olha para Kristen Stewart sem se lembrar da insípida Bella Swan, personagem que interpretou no filme Crepúsculo. Boa parte das adolescentes, que sonham com vampiros charmosos ou príncipes encantados, pode se considerar mais interessante do que Bella e alegrar-se por isso.

Essa nova versão de Branca de Neve garante que a beleza verdadeira está na bondade. Por isso a madrasta feiticeira manda um caçador arrancar o coração da princesa fugitiva, para absorver o que a enteada tem de mais precioso. Mas calma! Um filme que exige pouco em termos de estética de sua protagonista jamais cometeria o erro de louvar uma benevolência incomum. Os espectadores não têm vocação para santos. Então a bondade da nova Branca de Neve também é corriqueira, nada especial.

Outro motivo para o sucesso do filme está na falta de originalidade, que gera um déjà vu a cada quinze minutos. Branca de Neve e o Caçador lembra O Senhor dos Anéis nas cenas de batalha. Transforma os anões mineiros de Walt Disney em anões guerreiros à moda de Tolkien. Tem um quê de Harry Potter, outro tanto de Avatar com seus longilíneos espíritos da natureza. A madrasta de Branca de Neve lembra a Feiticeira Branca de As Crônicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa tanto em aparência quanto nos poderes de tornar o ambiente estéril.

Na cena em que um grande veado branco reverencia Branca de Neve, ouvi crianças comentando "É o patrono do Harry Potter" enquanto alguns pais lembraram-se do filme A Lenda (Legend, 1985), onde um grande unicórnio branco se aproxima de uma princesa. A Branca de Neve guerreira tem muito de Joana D`Arc e por aí prosseguem as coincidências propositais. O conhecido reconforta e vende bem, quando ganha novas roupagens.

Branca de Neve é uma história da tradição oral alemã. Com base em versões diferentes, os irmãos Grimm chegaram à narrativa que foi publicada por volta de 1820, junto com outros contos de fada para adultos e crianças. Sim, originalmente, esses contos destinavam-se aos adultos, que podiam utilizá-los para ensinar as crianças apavorando-as com um mundo cheio de horrores e perversidade.

Nenhum estúdio de cinema ousaria oferecer ao público infantil uma versão de Branca de Neve que, além de violência, contivesse pedofilia, violência sexual e necrofilia. Pesquise e vai descobrir que todos esses ingredientes constavam das receitas originais. Os próprios irmãos Grimm suavizaram o conto. Por sua vez, a Disney adoçou-o.

Então nem vale a pena reclamar que Branca de Neve e o Caçador não respeita o original. Qual original? Tudo bem se a princesa se interessa por um viúvo bêbado, cheio de neuroses, que pretendia matá-la. Tudo bem, também, se os anões não viram nada de especial naquela princesa desenxabida e se um deles teria até prazer em matá-la. A vida é assim. Parte do público torce pela feiticeira porque essa conversa de beleza interior não convence.

Branca de Neve, em suas múltiplas versões, vem atraindo olhares da psicologia, da alquimia e do misticismo. Branca de Neve e o Caçador flerta com esses seguimentos, mas, para seduzir o mercado adolescente, atraiçoa a lógica original da história. A princesa precisava ser linda fisicamente porque, no conto, a beleza exterior simboliza a interior. A opção por uma princesa comum exigiria demonstrações de bondade extraordinária. A princesa Kristen demonstra força e coragem, mas seu mérito tampouco se encontra nessas qualidades. Seu valor está no sangue real, que a torna digna do trono por direito divino. Sinceramente, heroína moderna e monarquismo medieval não combinam.

Nota do Editor
Carla Ceres mantém o blog Algo além dos Livros. http://carlaceres.blogspot.com/

Carla Ceres
Piracicaba, 19/7/2012

 

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