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Segunda-feira, 7/1/2002
Bom esse negócio de Hit Parade
Arcano9


Londres respira música pop. Como no Brasil a mídia transborda com os talentosos artistas do axé baiano ou com os criativos pagodeiros dos morros do Rio de Janeiro, por aqui há uma verdadeira indústria da música de beats bem marcados, eletrônicos acordes, vozes afinadas, amplificadas e metamorfoseadas pelos pedais e softwares mais avançados. No Brasil, o pop mundial parece ecoar, apenas ecoar. Estarei errado? Antes de vir para cá, eu tinha uma idéia de que pop consistia apenas de uma antologia de grandes nomes - Madonna, Prince, George Michael. Em muitos casos, minha suprema ignorância me fazia confundir os canais e eu nem sabia definir o que era rock, pop ou simples bate-estaca de discoteca. (Aliás, um pequeno parênteses... não tive minha adolescência nos anos 70, mas ainda uso essa palavra, "discoteca". O que devo usar para ser aceito pelos mais descolados, hoje em dia? Clube? Casa noturna? Nightclub? Inferninho? Caverna?)

Minha ignorância foi exarcebada, é claro, pelo fato de eu gostar de um tipo de música que não é tão comum. Jazz tradicional não é, digamos, a coisa mais groovy do momento. E nem mesmo em New Orleans é, e isso faz tempo. Mas essa minha ligação com as cornetas e pistões certamente foi um elemento decisivo na formação desta minha concepção de que Madonna, Prince e George Michael produzem música sem espontaneidade, e se a música não tem espontaneidade, ela não expressa a verdadeira emoção no strings, e se é assim não é música, trata-se apenas de uma embalagem sonora sem graça e desprezível.

Mas, como dizia, Londres respira essa coisa desprezível. Coisa desprezível que tem ramificações vastas, na TV, no rádio, nos jornais. Até aí, nada de mais. Mas um belo dia, no meu trabalho, acharam que eu tinha cara de coringa. Sou jornalista de uma rádio daqui, trabalho basicamente com notícias internacionais, esses negócios agradáveis do tipo bomba em Jerusalém e aviões se chocando com prédios, que vocês tanto adoram acompanhar aí do Brasil. Mas um dia, vieram os chefes daqui e me surpreenderam. "Você gosta de cultura?", me perguntaram. Após minha resposta afirmativa, indagaram se eu queria substituir o produtor do segmento cultural da rádio durante suas férias. De novo, sim. Adoro desafios, afinal.

Minha primeira missão, algo realmente importante como imaginei a princípio, era fazer a tal da parada. E o que é essa parada, a parada? A tal da parada de sucessos. Chart, Hit Parade, Top Ten, Dez Mais, chame como quiser. A idéia é simples: acompanhar os singles que foram lançados nesta semana, pesquisar listas na Internet que indicam os mais vendidos, depois gravar uns 3 minutos de resumo sobre as músicas que são novidade na parada desta semana, mostrando um pouquinho do trabalho das bandas ou cantores responsáveis por elas para os ouvintes e explicando a história deles. Alguma pesquisa, uso da voz, música, pique. Enfim, interessante, interessante fingir que eu sou o Kid Vinil, pensei eu.

A parada de sucessos - algo que não existe no Brasil, ou pelo menos não é tão popularizado - é o que dá realmente sentido para o Pop por aqui. É a febre competitiva. É a força por trás de tudo. Nas lojas, nas ruas, todos comentam o grupo que está em primeiro na parada desta semana. O pessoal sabe quem é o número 1, é tão natural como seria em São Paulo saber o resultado do último jogo do Corinthians. Quando um músico que eles não gostam lança um single e não consegue ficar entre os 5 mais vendidos, há até comemoração. E há também torcida, propaganda boca-a-boca de fã para fã, campanha. Tudo isso, é claro, é proporcionado também pelas características do mercado por aqui. No Brasil, um grupo, para se lançar no mundo artístico, precisa arranjar grana, um bom padrinho (isso é importante: de preferência o Gugu, o Raul Gil ou o Faustão), criar um repertório razoável e lançar um álbum. Poucas são as gravadoras independentes - na maior parte dos casos, os músicos tem que ficar torcendo que um desses manda-chuvas da Polygram ou da BMG tenham simpatia por suas causas. Aqui, por outro lado, há os singles: são bem mais baratos de produzir e exigem menos trabalho - bastam duas boas canções. Também há trocentas gravadoras menores. E há sujeitos, muitos, que investem e conseguem criar um pequeno estúdio de gravação em suas casas.

Preparando minhas "paradas", semana após semana, curiosamente passei a entender a cultura do pop. E posso dizer que, ainda que aparentemente não exista uma verdadeira sinceridade na produção musical desses sujeitos da parada, é empolgante ver como eles se matam para chegar ao topo. É como se um campeonato inteiro fosse jogado em apenas sete dias, e no final, na segunda-feira, sempre surgisse um novo campeão. Às vezes, o campeão da semana anterior prevalece. Às vezes, um ilustre desconhecido, com um troço qualquer que por algum mistério conquistou a simpatia dos consumidores, bate monstros sagrados do show businness com os olhos vendados. Quando isso acontece, vai por mim, é hilário.

Nestes últimos meses, isso aconteceu duas vezes por aqui. Duas vezes... não sei se vocês no Brasil ouviram falar de um sujeito chamado Afroman(foto acima). Ele chegou ao topo da parada britânica em 21 de outubro com o single Because I got High. Because I got High é uma singela canção em que Afroman - com convincente autoridade - fala sobre as besteiras que fez e sobre as coisas importantes que deixou de fazer por ter fumado maconha demais. A melodia é monótona, a letra uma piada completa, um escracho. No video clip, aparece ele fumando um baseado gigantesco. Na mesma semana em que chegou ao topo, ele derrubou artistas do porte de Britney Spears. Um trechinho da letra genial de Afroman: I messed up my entire life because I got high/ I lost my kids and wife because I got high/ now I'm sleeping on the sidewalk and I know why/ because I got high /I messed up my entire life because I got high/ I lost my kids and wife because I got high/ now I'm sleeping on the sidewalk and I know why/ because I got high. Genial, brother.

Um outro exemplo - ainda mais ilustrativo. Daniel Bedingfield era um sujeito absolutamente desconhecido no cenário musical britânico até o início do mês passado, quando foi o campeão. Seu sucesso, Gotta Get Thru This, foi (pelo que informou a imprensa) todo gravado por ele próprio em sua casa, e lançado pelo selo independente Relentless. Depois do seu sucesso repentino, Bedingfield passou a ser o "procurado" das gravadoras. Esperamos todos que não seja um cara de um hit só na vida, como tem tantos por aí...

Além de permitir, via acaso, que sujeitos desconhecidos ou piadistas se tornem heróis por uma semana ou duas, o "sistema de paradas do pop britânico" (vamos chamar assim) também abre espaço para verdadeiras batalhas épicas, epopéias que estremecem os leitores dos tablóides e os DJ das rádios e discotecas. Veja o exemplo de Kylie Minogue. Pouco conhecida no Brasil (seus maiores sucessos por aí devem ter sido I Should Be so Lucky e Especially for You, de 1988), a loirinha australiana é uma pessoa bastante querida dos britânicos, graça ao seu sorriso e jeito meiguinho. Há muito tempo Kylie não lançava nada, não tinha sucesso. Havia até, enfim, aqueles que achavam que ela já era. Outra cantora que para muitos já estava enterrada é a ex-Spice Girl Victoria Beckham, a Posh Spice, que é titular absoluta das capas de revistas de fofoca por aqui mas, como cantora, sempre foi e continua sendo um grande nada (são os críticos daqui que falam, não eu). Pois é, olha que coincidência: as duas decidiram lançar trabalhos novos justamente na mesma semana, disputando juntinhas o topo da parada. A vitória não foi de Vitória: Kylie arrasou com Can't Get you Out of My Head, um hit poderosíssimo, coisa realmente assustadora, que até hoje continua sendo uma das canções mais executadas nas rádios. Não sei se fez sucesso por aí. Se não tiver feito, procure.

Que incrível, não? Eu, falando, empolgado, de Kylie Minogue e música pop. Sabe, depois de meu feliz mês fazendo paradas e acompanhando esse mundinho de perto, descobri que, de vez em quando, ainda consigo ficar surpreendido com o que esses músicos fazem. Acho que é tudo uma questão de gosto - se eu estou no clima de ouvir Jazz, ouço Jazz; se estou no clima de ouvir pop, ouço pop. O que me espanta e entristece, entretanto, é ainda não sentir vontade, nem de vez em quando, de ouvir o É o Tchan. Amaldiçoe-me! É, amigo, ainda aprendo a ser brasileiro de verdade...

Arcano9
Londres, 7/1/2002

 

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