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Terça-feira, 14/8/2012
Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge
Duanne Ribeiro

Christopher Nolan conclui sua trilogia. Se Batman Begins foi bom e Batman: O Cavaleiro das Trevas ótimo, Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge fica entre os dois. É um filme diferente, com menos enfoque em cenas de ação e mais em desenvolvimento psicológico do protagonista. O filme se passa oito anos após o término do precedente, com Bruce Wayne "aposentado" da atuação como Batman, e seu alter-ego é visto como criminoso pela polícia local. A cidade, antes violentíssima, está praticamente pacificada, e um vingador não parece ser necessário. Surge no entanto uma nova ameaça - Bane, líder de uma espécie de exército-seita - e ele se sente impelido a voltar à ativa. A obra se inspira vagamente em duas séries clássicas das histórias em quadrinhos do herói: Queda do Morcego e Terra de Ninguém.

A obra tem qualidades. A preocupação de Nolan com o realismo é a maior delas: além do lado subjetivo do Batman, percorremos os problemas corporais que causam sua vida de vingador, e as exigências de exercício constante. Os outros personagens também têm caracterizações sempre próximas do plausível. Bane é forte como personagem pela união da falta de expressão facial (pela máscara) com um pensamento aparentemente calculista, planejado, e a presença física intimidadora. A Mulher Gato nunca se chama assim, e só delicadamente dá a impressão de orelhinhas de felina, por causa dos óculos especiais: não é mais uma "fantasiada", assim como outro personagem que surge pela primeira vez na nova série também não é. Há também problemas: lacunas de verossimilhança e ingenuidade do enredo (um exemplo está na batalha final Batman/Bane) e, principalmente, um teor ideológico intenso, que prejudicou sobremaneira meu envolvimento com a narrativa.

Essa ideologia será criticada abaixo - não por suas teses, mas pelo modo insidioso com que é introduzida: ela faz o filme funcionar como uma longa "falácia do espantalho", distorcendo a posição de seus oponentes até o ponto em que sejam simples de negar. É nela que quero me focar. Este artigo acaba sendo um texto mais direcionado para quem assistiu o filme - tudo que segue contém spoilers - portanto convido o leitor a retornar com a obra vista. No entanto, ele é legível como debate de ideias, para quem não pretende ver este Batman: o que trago, em suma, é uma leitura cultural-política de "terrorismo", "revolução" e "liberalismo".

Não pretendo justificar a necessidade dessa crítica à ideologia no corpo da coluna; se o leitor quiser impugnar a utilidade ou plausibilidade de um debate assim a respeito de uma história de um homem vestido de morcego, podemos discutir nos comentários.

Bane é os 99%
"Alguns homens só querem ver o mundo queimar". Comentei com um amigo essa frase do segundo filme da trilogia, fascinante pelo seu elogio à desordem (visível, por exemplo, nos posts que inspirou, como esse). Esse meu amigo retrucou com algo perspicaz: a tese, vinda da boca do mordomo inglês Alfred, é sintomática do pensamento do colonialismo britânico de tempos passados (no diálogo, o mordomo cita a incursão em Burma, atual Myanmar) e pinta o "terrorismo" como uma atitude destacada da razão; não há que compreendê-lo, basta combatê-lo (para um contraponto, leia a resenha de Virtude e Terror, antologia de Slavoj Zizek, por Vladimir Safatle). O Cavaleiro das Trevas Ressurge é construído sobre esse tipo de visão enviesada e/ou redutora de temas sociais, e é isso o que pretendemos demonstrar.

No país que assistiu em 2011 a expansão do movimento Occupy e do slogan "Nós somos os 99%" desde Wall Street para cerca de 600 comunidades norteamericanas e 95 cidades de 82 países, Nolan lança uma caricatura da crítica à riqueza e do status quo. A Mulher Gato diz: "Há uma tempestade chegando, senhor Wayne. Você e seus amigos vão se perguntar como puderam viver com tanto e deixar tão pouco para o resto de nós". É quase uma paráfrase do slogan mencionado, com o acréscimo da "tempestade", que remete a Bob Dylan em A Hard Rain's Gonna Fall, também de uma época de mudanças sociais. Há, assim, ao menos dois caminhos para que o público caracterize essa posição como típica de algo conhecido, e para ver tal posição derrogada: a chuva pesada que cairá será, enfim, o ataque de Bane que é descrito logo abaixo, e a Mulher Gato, como se pode prever, se arrependerá.

Há também o escárnio sobre a bolsa de valores: quando Bane a invade, alguém diz que não tem dinheiro ali; ele responde: "Sério? E o que vocês todos fazem aqui?". A ironia indica o despeito social possivelmente descrito por sim, é claro que há dinheiro, velhos vencedores e uma filiação tremenda com o poder. Bane por um instante é esse ressentimento. E também para que vejamos, de duas formas diferentes, que esse ressentimento é inapropriado.

Liberalista, Conservador, Apolítico
A primeira é a visão liberalista de mundo implicada. Em dado momento, Bruce Wayne - o Batman - pergunta ao funcionário que gere sua empresa porque pararam de financiar um orfanato. A resposta é que sem lucro essa ajuda não é possível. A melhora social se vincula aqui diretamente com o crescimento da iniciativa privada, sob a qual recai o financiamento destinado a menores carentes. Repare na ausência do Estado, que outrossim é sempre posto como poder corrupto ou ineficiente, seja Legislativo ou Executivo (um exemplo: o prefeito, diz-se, demitiria em breve o Comissário Gordon, ao fim do filme um herói) - é a indústria e seu modelo administrativo o ideal (a Corporação Wayne é quem desenvolve uma fonte de energia limpa superior a qualquer outra, além de um arsenal poderoso; mas com a sensatez de aguardar pelas "mãos certas" para entregar o material). O enredo comporta de certa forma até o mito do self-made man: Miranda Tate conta como nasceu pobre e se alegrava com uma fogueira, e agora é bilionária.

A segunda é a ideia conservadora de "revolução". Após explodir vários pontos de Gotham, dentro de um estádio arrasado, Bane discursa à massa: "Não viemos como conquistadores, mas como libertadores, para retornar o controle dessa cidade a seu povo". Na sequência, ele liberta prisioneiros de uma cadeia citada no início como destino de milhares de membros do crime organizado, chamando-os "oprimidos". O vilão se arroga uma revolução em nome da liberdade, do povo, dos oprimidos. São palavras, no filme, sem conteúdo, como se fossem só o negativo de qualquer coisa instituída antes. São ademais termos carregados e apontam para correntes ideológicas, em geral a esquerda, em específico o comunismo. Um exemplo dessa última ideia ocorre quando uma amiga da Mulher Gato lhe diz que tal residência é agora casa de todos - "de forma perfeitamente comunista", descreve o crítico Christian Toto. Ainda mais: o país de origem do cientista que altera um reator em arma nuclear para Bane é a Rússia - vilã típica em filmes hollywoodianos, por motivos simples de aferir.

A revolução de Bane é sobretudo vazia em forma e fato. Em primeiro lugar, o espectador não pode crer nela nem por um instante: sabemos que a bomba nuclear com que Bane ameaça a todos e impede que saiam da cidade explodirá de qualquer forma. Além disso, ele se mantém poderoso após a intervenção (o conquistador que negou ser). Por fim, não há, ecoando o Alfred colonialista, sentido ou objetivo: o que ele instaura é só barbárie. Assim como vê Hobbes, encerrado o Estado só há guerra de todos contra todos: o filme nos mostra os indivíduos sem capacidade de organização ou agência, entregues às gangues; a única instituição de pé é uma paródia do Judiciário. Apolítica, a revolução de Bane é um elogio ao status quo anterior, a opção mais sólida frente a mudanças que são irracionais ataques à democracia. Juntando as duas ideias apresentadas, temos uma proposta social clara, coroada pela defesa da coerção além da lei, para manter a lei: "Às vezes, as regras se tornam grilhões", diz Gordon...

Conforme diz Mark Fisher, no Guardian: "O Cavaleiro das Trevas Ressurge desenha linhas nítidas: comentários anticapitalistas são aceitáveis, mas qualquer ação direta contra os ricos ou lances revolucionários pela redistribuição da propriedade levam ao pesadelo distópico. (...) O filme pelo menos expôs a duplicidade e a violência necessárias para preservar as ficções em que os conservadores querem que acreditemos - mas demonizou a ação coletiva contra o capital, ao passo em que nos pede para ter esperança e fé em um rico purificado". Prefiro não me colocar, pelo menos nesta coluna, contra capitalistas ou conservadores, tampouco defender ou atacar o liberalismo ou o movimento Occupy. Meu foco é o esquema falacioso da produção de Nolan, e o empobrecimento de debate que pode causar, no que se refere a recobrir as ideias do adversário com distorções que impedem a sua compreensão.

Duanne Ribeiro
São Paulo, 14/8/2012

 

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