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Quarta-feira, 15/8/2012
Luz em agosto
Luiz Rebinski Junior

Faulkner é daqueles escritores que nos faz acreditar no juízo de valor artístico. Não tenho tarimba para dizer quem são os cinco ou dez melhores romancistas do século XX nos Estados Unidos, mas, diante de minha parca listinha de autores americanos lidos, o senhor Faulkner está no lugar mais alto do altar. Diferentemente do que se acredita - do que eu acreditava - sobre a prosa do escritor, Faulkner está longe de ser um autor de linguagem, da estirpe de Guimarães Rosa e Joyce. Mas ainda assim, sua obra é uma aula de escrita criativa.

É interessante notar que o autor que escreveu um livro intrincado como O som e a fúria surgisse, apenas três anos depois, em 1932, com Luz em agosto, um romance bem mais convencional, se é que esse tipo de palavra pode servir para descrever a prosa de Faulkner sem que o autor do texto passe por um idiota tão idiota quanto o Benjamin de O som e a fúria. Não que Luz em agosto seja um folhetim, mas o livro segue um rumo narrativo oposto ao que Faulkner empreendeu no seu romance mais "experimental". O som e a fúria é o livro de um autor extremamente habilidoso, mas que parece querer mostrar serviço, dizer logo a que veio e botar o pé na porta da literatura americana, transformando Hemingway e Fitzgerald em apenas dois garotinhos ricos querendo curtir a vida em Montparnasse.

Sim, O som e a fúria é um momento mágico, em que Faulkner eleva a prosa americana a um nível incrível, mas Luz em agosto parece ser o romance de um autor mais maduro, que domina melhor as tramas e conjuga, de maneira brilhante, forma e conteúdo. O problema de alguns escritores experimentais, é que, de tão experimentais, esquecem até de que o livro é - e sempre será - uma narrativa. E neste romance de quase quinhentas páginas, Faulkner escreve um pequeno épico, contado de forma nada convencional. A cena inicial, com Lena Grove - uma jovem grávida - andando a esmo à procura do parceiro que lhe deixou desamparada é magistral e prenuncia uma história de contornos épicos, contada por meio de três trajetórias: a da própria Lena, a de Joe Christmas, um homem de "sangue negro" acusado de matar uma mulher branca, e do reverendo Hightower, um homem que caiu em desgraça diante da traição e morte da esposa.

O grande barato do romance é saber como Faulkner vai amarrar essas três histórias que, por um bom trecho do livro, parecem totalmente dispares. E esse é um ótimo argumento para sustentar que Faulkner é um escritor poderoso. Cada história tem o seu próprio clima, fluxo e densidade. O senhor Faulkner sabe contar uma boa história sem entregar o ouro antes do tempo. Sabe construir personagens complexos sem transformá-los em heróis ou vilões, ainda que a derrocada esteja no caminho de todos.

A guerra civil americana e suas consequências estão no centro do trabalho do escritor. Todos os três personagens principais de Luz em agosto são produto dos acontecimentos históricos que colocaram o sul e o norte do país em conflito. A decadência e a ruína do sul do país está em cada movimento dos personagens de Luz em agosto: seja no fanatismo religioso de Hightower, seja no racismo sofrido por Christmas ou na falta de perspectiva de Lena. Dos três, Christmas tem o fim mais trágico, com acontecimentos que narram a fuga de um homem que, ainda que com uma morte terrível, se liberta de uma vida atormentada, marcada pela humilhação e o preconceito. Mas é Lena quem representa melhor a galeria de tipos que pairam pela grande obra que Faulkner, apesar da sede incontrolável, construiu. Desamparada por um homem que lhe deixou grávida e foi curtir em outras paragens, Lena inicia e termina o romance sem perspectiva nenhuma, como se todos os acontecimentos que protagonizou fossem apenas parte de um roteiro que, pelo menos para ela, já era previsível. Se Christmas é uma espécie de mártir da questão racial, Lena sustenta a condição de pária, mas também representa parte da sociedade americana que assistiu as maiores barbaridades de maneira resignada, sem reação. Claro, a outra leitura possível é a que coloca Lena como vítima da misoginia e do autoritarismo. Mas, o melhor de tudo neste livro, é que ninguém, absolutamente ninguém, é inocente. Nem mesmo Christmas, que tem morte digna das extravagâncias cinematográficas de Quentin Tarantino, é apenas vítima, pois a ele coube o papel de matar a mulher - branca - que lhe saciou a fome e o sexo.

E, cobrindo a camada existencial-sociológica do romance - que é absorvida de forma epidérmica e não a fórceps - há uma história de pegada policialesca, com direto a perseguições e muitas cenas de suspense. Desde meu debute no universo de Faulkner, venho sustentando, mentalmente, que o escritor é um romancista policial, talvez o melhor de todos, justamente porque nunca considerou a ideia de fazer literatura de "gênero". Talvez porque sabia que seus romances anulariam qualquer tentativa de classificação. E essa é a melhor maneira de encarar o escritor: sabendo que a cada tomo irá encontrar não apenas uma história, mas uma porta para um novo mundo.


Luiz Rebinski Junior
Curitiba, 15/8/2012

 

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