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Terça-feira, 8/1/2002
Princípio ativo
Rafael Lima

Essa aconteceu com meu irmão. Voltando para casa, foi parado por dois turistas - a área onde moro sempre foi pródiga em turistas - mochilão às costas, pedindo o que todo turista quer: informações. No caso, onde era a entrada da estação do metrô. Meu irmão informou-lhes que a estação de metrô não era a walking distance de onde estavam, mas que era bastante fácil chegar até lá, qualquer ônibus levava. Como não?, retrucaram os gringos: eles sabiam onde era, só não estavam encontrando a entrada subterrânea... Meu irmão insistiu no ônibus, o mínimo necessário até a entrada mais próxima. Diante do impasse, os gringos sacaram o mapa e mostraram, olha aqui, Estação Cantagalo, exatamente onde estamos.

Posso até imaginar a cara de espanto de meu irmão ao ver, afiançada pelo mapa, um projeto de estação que começou em 1986, destruindo completamente a pracinha sob a qual ficaria localizada. Anos e anos de ferragens à céu aberto pareciam ser o destino daquele projeto, até a conversão em estacionamento subterrâneo (hoje desativado) com uma nova, menor e desfigurada praça por cima, na administração seguinte. Meu irmão ponderou que não valeria a pena explicar a história toda, limitando-se a explicar que a tal estação não existia (ainda que constasse dos planos de expansão). E voltou à arenga de pegar um ônibus etc. Pragmaticamente, os turistas assentiram e perguntaram: é para aqui, então?, apontando para a Estação Siqueira Campos no mapa. Situação que colocou meu irmão coçando a cabeça: bom, essa, pelo menos está em fase de construção, se vocês passarem lá vão ver o canteiro de obras... Não, não, peguem na anterior, Estação Arcoverde, que, não há dúvidas, está lá. Os turistas subiram nas tamancas: quer dizer que duas estações no mapa não existem? Como é que a gente pode se orientar assim? Meu irmão ponderou que se eles quisessem, poderiam processar o editor do guia, mas que elas não existem, não existem. E para chegar lá vocês tem que pegar um ônibus... Assumindo a derrota, meio a contragosto, os mochileiros partiram em direção ao Eldorado. Quer dizer, a Arcoverde.

* * *

Essa quem me contou foi um amigo do trabalho, de férias em Lisboa, Portugal. Entrou num táxi e pediu para tocar para um museu. O motorista foi, cruzando destemidamente sinais e avenidas (como qualquer motorista de táxi), enquanto os passageiros contemplavam o descortinar da paisagem (como quaisquer viajantes conhecendo uma cidade) até chegar vitoriosamente ao destino. Abriu a porta, retornou o troco e avisou em seguida:
- Aqui 'stá. Às segundas feiras o Museu não 'stá aberto.
A primeira reação foi de enfiar um murro no motorista. Foi apenas o tempo dele cair em si e ver que não adiantava brigar: era assim que os lusitanos raciocinavam. Ele tinha pedido para ir até o museu, não perguntado se estava aberto ou fechado, e o motorista, muito razoavelmente, cumprira sua missão, qual fosse a de levá-lo até lá.

* * *

O que as duas historinhas - absolutamente reais - têm em comum é o raciocínio de baixo contexto utilizado por ambos os protagonistas. Diretrizes claras e bem definidas seguidas linearmente sem espaço para elucubrações de ordem superior. Pediu para levar até o museu, levei. O mapa disse que tem uma estação aqui, cadê a entrada? Esse raciocínio é tipicamente encontrável entre os povos anglo-saxões, porque direto, focado no resultado, ignorando conscientemente o caminho para chegar até ele. O que, e não como. Ao contrário dos povos latinos, geralmente mais concentrados no processo, a despeito do objetivo. Num balcão de aeroporto norte-americano, a funcionária estará preocupado em fazer a fila andar, a todo custo. O importante é evitar atrasos que comprometam a partida do avião. Assim, todos aqueles procedimentos padronizados para a acelerar o check in das malas, que acabam deixando a impressão de que um chimpanzé bem treinado poderia substituir alguns atendentes. Quem já dialogou pelo vidro através daqueles microfones com bilheteiros de qualquer Multiplex sabe do que estou falando. A mesma situação num aeroporto na França teria desenrolar diferente, onde talvez a funcionária valorizasse a interação humana, ainda que curta e funcional, que acontece no momento do check in - e, eventualmente, ainda aproveitasse para fazer um tricô: "Ah, você é de Nantes? Minha prima mora lá." Papo furado, enfim. Para que serve o papo furado?

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O que nos leva a uma grande ainda que quase imperceptível questão do nosso tempo: o objetivismo, essa ansiedade de se chegar logo ao resultado, ao fim; que parece amoldar a cultura de todos povos para esse admirável mundo novo. Um dos traços dessa homogeneização, de que já falei aqui no Digestivo, é a cultura do consumo, aquele sentimento expresso na frase "o freguês tem sempre a razão", orientação de ordem comercial que infestou todas as demais relações sociais. O raciocínio requerido pela cultura do consumo é exatamente o de baixo contexto - focado na satisfação do freguês - a despeito dos meios. O Bife estava mal passado? Troca-se por um no ponto. O livro chegou com a capa arranhada? A livraria virtual te dá um crédito. O carro foi arranhado no estacionamento? O shopping te paga a pintura. Tudo isso soa, à primeira vista, a melhor das maravilhas, mas tem conseqüências claras, que não se costuma considerar:
1) Só existe acesso às benesses para quem se transforma num consumidor, isto é, entra na roda-viva da remuneração-e-consumo. Esse mecanismo costuma funcionar às maravilhas quando cumpre bem sua função de distribuir os bens que gera. Mas se mostra insatisfatório quando exclui quem não topa suas regras.
2) Os direitos do consumidor convertem-se em direitos do cidadão, banalizando as complexas interações entre indivíduo e Estado em problemas para o manual do Procon. Pague seus impostos, tenha estradas bem conservadas, serviço médico e coleta de lixo. Como deve o Estado administrar o ervanário público? Como a sociedade de consumo pode satisfazer as vontades dos consumidores - vontades muitas vezes criada por ela própria - para que eles não fiquem por aí, gritando que não conseguem se satisfazer, qual Mick Jaggers de esquina? Como evitar que a democracia degenere num balcão de negócios?

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Ao envolver uma relação humana numa transação comercial, compromete-se irreversivelmente a última. Há culturas primitivas que simplesmente repudiam o uso do dinheiro, porque acreditam que ela atrapalha as relações humanas. O comércio é substituído por uma troca ritualizada, de antes presentes do que bens. Não é por acaso que o uso de dinheiro é proibido no Burning Man: privilegia-se a interação entre quem precisa e quem tem sobre as noções de oferta e demanda. Se isso soa apenas como uma burocratização meio inútil para chegar no fim - a obtenção dos bens - é porque a ânsia de respostas já está infestada no comportamento. A importância do processo parece ter sido perdida em alguma curva da estrada. No entanto, a profusão de exemplos mostram que há uma busca quase desesperada pela riqueza que se foi junto com processo. O sucesso televisivo dos reality shows mostra que, cada vez mais sem tempo para viver uma vida entre seus compromissos, os telespectadores a substituem curtindo um simulacro na televisão, relembrando aqueles negócios meio inúteis que a gente faz quando não está fazendo nada - exatamente o que os personagens de um reality show fazem o tempo todo. O mesmo acontece nos blogs, quando se tenta enfileirar acontecimentos ou idéias de forma a se desenhar o perfil de uma coisa por si só fluida e maleável, a vida do redator. É a tentativa de entender o que acontece no processo, de ver como as variáveis se comportam e interferem entre si, pois apesar do comportamento humano se mostrar bastante repetitivo (a ponto de um cientista como Richard Dawkins propor que as idéias se comportam como vírus, e que somos seus meros vetores) ainda é suficientemente complexo para não ter sido completamente mapeado. Também por isso os manuais de auto-ajuda fazem tanto sucesso de vendas, do misticismo de Paulo Coelho ao ócio criativo do Domenico De Masi: o que eles trazem é uma tentativa de objetivar o conhecimento, ou antes, a sabedoria necessária para... como é que se diz? A busca da felicidade, como se fosse fácil assim esquadrinhar em instruções tipo ponha-o-pino-A-no-furo-B a sabedoria que advem de muito papo furado, um certo ócio zen, e a preocupação com "o mínimo e o escondido" onde Machado de Assis dizia gostar de enfiar seu nariz. Ou, como preferia Noel Rosa, o samba que não se aprende na escola. E dá um tempo com esse ISO 9000.

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Conclusão? É no mínimo incoerente uma coluna dessas chegar a qualquer conclusão no final. Se você chegou até aqui esperando por uma, é porque não entendeu nada. E o pior é que não adianta reler.

Rafael Lima
Rio de Janeiro, 8/1/2002

 

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