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Sexta-feira, 31/8/2012
Tradução e acesso
Ana Elisa Ribeiro

Por estes dias, andei pensando muito em tradutores. Conheço alguns, pessoalmente, mas não muitos. Eu mesma sinto um prazer incontido quando me arvoro na tradução de alguma coisa. Mas o sentido que me vem (o sentimento, talvez) é o de estar fazendo algo muito bom pelo meu próximo. Se a Babel era uma espécie de punição, a tradução é a própria transgressão.

Dificilmente seremos poliglotas, democratica e popularmente, poliglotas. Que me perdoem os professores de língua inglesa, mais ainda os que dedicam suas vidas à pesquisa sobre o assunto, mas muito provavelmente seremos sempre um povo de uma língua só, no máximo transeuntes de um segundo idioma meio frouxo. Talvez sejamos sempre excluídos de um universo de falares variados, dando aos poucos que circulam por ali o título imponente de "privilegiados". Mas não estou me lamentando.

Na casa dos meus pais, uns anos atrás, diziam para nós que não precisávamos aprender inglês. Vive-se bem a vidinha nos arredores sem saber outra língua. Que nada, dinheiro gasto à toa. Contente-se com seu português, invista em usá-lo bem e estará feita. De certa forma, concordo com isso, ao menos na parte do português bem-aprendido. Já nas questões alienígenas, sei não. Bem que me faz falta um inglezinho mais bem-arranjado, um espanhol mais respeitável e um francezinho de vez em quando. E bem que tentei.

Para certas coisas, é preciso ter apoio, inclusive moral, quando não o financeiro. Os cursos de inglês que eu conhecia duravam mais de década e ainda deixavam muita gente só no "the book is on the table". Essa deve ser a expressão mais jocosa e mais famosa das piadas nacionais sobre o ensino de língua estrangeira.

Meus pais, que estudaram em disputadas escolas públicas, nos idos de 1950-60, aprenderam, e pra valer, inglês e francês, sem falar nas noções de música, hein. Eu cá, também numa escola pública, tive um inglês de boteco, um aninho raso de francês e algum período de música numa sala com piano. O que ficou?, talvez o leitor indague, quase nada, digo eu. Ou estarei sendo injusta?

Eu sei dizer que me chamo Ana, em francês. Bom, isso já alivia uma parte da conversa, caso eu a tenha. Fui fazer francês na faculdade e aprendi a ler. E li. Tudo numa tacada rápida, de curso instrumental. Mas outro dia tentei ouvir uma palestra na língua de Roger Chartier e já não deu. No espanhol não acontece coisa tão grave porque é língua muito mais hermana. No inglês, tenho a sorte de ter sido fã, muito fã, de rock.

Foi nesse amor vivido pelo rock'n'roll que descobri a tradução. A curiosidade de saber o que estava ouvindo e cantando me movia a traduzir aquelas letras, em geral horrorosas, para a minha língua, que tornava as frases bem maiores. Traduzir na raça, na mão, como não se faz hoje, com tanto translator à disposição. Traduzir com dicionário de bolso, tentando encaixar os sentidos meio na marra, vertendo ao português o que nem sempre tinha explicação.

Vez ou outra, me aventuro a traduzir um texto inteiro, dos grandes, para ajudar meus alunos. Mesmo na pós-graduação, eles chegam mais crus do que eu na leitura de textos originais que serão importantes para sua formação. Não sei se fazendo um desserviço ou não, traduzo o texto para abrir-lhes o acesso, num sentimento forte de que "não posso ficar com isso só para mim". É nesse sentido que acho que os tradutores (especialmente os profissionais, o que não é meu caso, claro) são anjos cheios de vozes, tagarelas abençoados que nos ajudam, os tartamudos, a entrar pela senda dos textos e dos conhecimentos sem tantos tropeços.

Não contra-argumentem, por favor, dizendo que eu deveria incentivar as pessoas a aprender outra língua. É claro que incentivo. Não foram poucos os estudantes que correram ao Centro de Extensão ou a uma escola conveniada para lustrar seu parco inglês de colégio ou mesmo para iniciar a caminhada pelas línguas estrangeiras. É razoável a lista de estudantes que foram fazer alemão, diante da possibilidade do intercâmbio institucional. E aprendem, sofregamente, a falar aquela língua que não ouvimos nas rádios e nem temos o hábito de assistir pela TV. Mas enquanto não nos tornamos todos poliglotas, vou prestando meu serviço de outro lado, compartilhando com outros leitores o que acessei na língua vizinha ou na outra, bem distante.

Passeando em Porto Alegre, ouvi as pessoas contando da Argentina e falando palavras espanholadas. Atinei para uma questão tão importante quanto verdadeira: sou mineira, não faço fronteira com outro país, meus limites são todos em português, meus sotaques, meus falares. Por razões geográficas, políticas, históricas e, claro, educacionais, tenho comigo que não é coisa do dia a dia ter de participar de mais de um universo. Minhas lacunas em relação a isso são resultado da falta de investimento, claro, mas também de não saber que, um dia, me tornaria uma viajante, transitando por lugares onde meu português não ecoa (principalmente o português). Um improviso que me custa, às vezes, o desentendimento, a mudez e a interrupção. No entanto, continuo fazendo a apologia do tradutor, esse falante múltiplo, capaz de tapar com um tapete macio um chão que me pareceria de espinhos.

A tradução deveria fazer parte de políticas de acesso, assim como as outras: a arquitetura, a usabilidade, o jornalismo científico. E é claro que me refiro à boa tradução, capaz de reduzir a opacidade de um texto estrangeiro. Porque a má tradução, ah, esta!, o diabo que a carregue.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 31/8/2012

 

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