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Quinta-feira, 18/10/2012
O crime da torta de morango
Elisa Andrade Buzzo


ilustra: Renato Lima

Havia algo de obsessivo naquele cheiro almiscarado, encontrado em meio a feiura desgostosa dos bares da avenida. A garimpagem distraída dos intervalos lhe fornecera como dádiva esta massa, tenra, amolecida por xarope levemente alcoólico, o creme pegajoso, pecaminoso, os morangos entumescidos de agrotóxicos, coroados por uma cobertura de gelatina vermelha. A embalagem transparente esquecida na geladeira era como um homem disponível pelo qual ninguém se interessa, mas que, no repente de uma admiração feminina declarada, torna-se um objeto subitamente desejado.

No café da manhã, já na mesa de trabalho, lá estava a torta meio comida na mesa, saboreada, na medida do possível, vagarosamente. Às vezes comprava duas tortas: a primeira serviria como entrada triunfal à fome; a segunda, como tranquilizante. Enquanto comia uma, olhava para o saquinho de plástico com a outra. Em algumas ocasiões, eram três as tortas, sendo a terceira e última reservada em oferenda ao ser amado.

No boteco em que a comprava, todos já sabiam quem era ela, aquela que entrava e perguntava pela tal torta. Reparavam, então, os atendentes, em sua sutil presença? Era visível em si uma agitação qualquer? Que rosto era aquele seu em que havia algo de marcante e relacionado a tortas de morango, se antes era simples e cinza e branco como todos os rostos famintos em horário de almoço?

Pois bem, havia momentos em que não tinha torta e a explicação que um homem deu, talvez um dos donos do bar, eram as férias escolares, sendo os alunos os "principais consumidores" da iguaria. E, então, ela não contava? Pois não, e assim as tortinhas apodreciam na vitrine gelada. De todo modo, por que não comer um de nossos pudins caseiros, que também são uma delícia?

De fato, um dia, ela entrou pronta a olhar se, com a volta das aulas, tal qual os estudantes, as tortas reapareceram. Mal pôde vislumbrar o balcão, um dos moços já gritava, "tem torta de morango!", ao que ela, só para ser do contra, e mais para não ter seus desejos revelados publicamente, ignorou o aviso e comprou uma água e chicletes de tutti frutti. Passou fome de sobremesa naquela tarde.

E então, as férias de inverno chegaram. Os alunos retornaram, mas as tortinhas, não. Perguntou a uma atendente de boné vermelho que era feito das tortinhas, torta de morango, não torta de frango, elas eram vendidas aí. A atendente ouvia a pergunta cabisbaixa, o olhar arredio. Estava diante de um assunto proibido? A banal delicatéssen. Não ouvia o clamor, era como se fosse um alimento de outro mundo aquele que ela inquiria, explicava em pormenores, em cima do qual a outra negava a existência no bar, constrangida. Pois não conhecia os produtos?

Daí, como se fosse necessário ou reforço policial ou uma explicação de um superior, apareceu um homem de camiseta polo listrada, o sobrolho grave. Ela voltou a explicar a história como se confissando estivesse, perdição, tortas de morango, coração, ao que ele, ao lado da moça encabulada, como se aguardasse a iminente chibata, arredia aos meus apelos gentis, respondeu que o bar não comprava mais as tortas, elas estragavam na vitrine, nunca mais, e sua postura era incerta e agressiva. Que mal havia em perguntar pela torta? A conversa adquiria contornos de investigação. Cada um contava uma versão diferente da causa daquele sumiço. Até o fim ela manteve a postura cândida, mas eu, ao menos, comprava, gostava tanto delas, não era possível que ninguém mais se interessava e dava por falta. Já se sentia ridícula e desnuda diante de um crime, cuja culpa desconhecia, da tentação por boas tortas de morango.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 18/10/2012

 

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