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Quinta-feira, 11/10/2012
Um alucinante encontro com Lula
Elisa Andrade Buzzo

Derrapo na calçada de pedras em frente à Sé, a despeito do escapulário. Diante da possibilidade do tombo, que não aconteceu, abririam-se outras frentes e, enquanto fujo da cena, a mulher que a acompanhou me diz "não cai, não". Eh, povo solidário! Na praça, um pouco mais vazia do que o usual, há um trio elétrico, jingles eleitorais profanando a sacralidade daquelas escadas, em que o corpo se assenta para contemplar a vida, algumas bandeiras vermelhas sacolejando molemente em trinta graus primaveris.

Dobro a Benjamin Costant em direção ao Largo São Francisco. Tive a semana toda, mas bem nesta sexta-feira sinto um impulso irresistível de ir ao centro. Ao lado da biblioteca de Direito, logo rente à sua estrutura na calçada, moradores de rua improvisaram cabanas de lona preta, grandes garrafas d'água aparecem por sobre o plástico, pertences dispostos ao chão. É quase um conjunto habitacional clandestino que se apresenta desavergonhado, diante das belas construções próximas à Faculdade de Direito. Estamos na véspera de eleição de vereadores e prefeito, e neste dia a cidade mostra tudo o que tem de bom e de ruim, de descaso e sentimento. Quem se importa em olhar para ela?

Resolvo comprar chocolates na João Mendes, e aproveito para fazer uma rápida passagem por sebos − encontro as prostitutas de calça branca e barriga de fora, postadas como postes, apenas os rostos se mexendo de leve no murmúrio da praça. Neste mundo variado do centro, abandono mais esta em busca de algo, de um vidrinho de óleo de rosa-mosqueta, perco-me nas lojas de bálsamos e produtos naturais entre sete ervas e sabonetes medicinais. E o sentido oculto daquele passeio se desvenda retornando à Sé a caminho do metrô, quando ouço a locutora do trio elétrico dizer "Lá vem o Lula!".

Lá está Lula, é ele, um homem que as poucos vira lenda, de camiseta polo vermelha, risonho, risonho, é o que vejo de três degraus acima da escadaria da Sé. Um salva de flashes o aborda no momento exato em que sai do carrão preto. Seguranças mal-encarados fazem um bloqueio, mas o povo não está lá muito empolgado para cometer excessos. Como é bom estar na vida a passeio. Apenas alguns arrastam na boca mole bordões, enquanto na boca de entrada do metrô, chips da Oi são vendidos por três reais. Tarde modorrenta, que assim não seria se Lula saísse junto ao povo, subindo as escadas-rolantes do metrô, rendendo loas à festa da democracia que ocorreria no dia seguinte. Mesmo assim, meu coração se aperta frente a história brasileira que um dia será distante. Eu, na Sé, aos trinta anos, vi o ex-presidente Lula. E destes pequenos momentos a vida se faz grande.

Talvez nada disso fosse, pois aquele foi um esquenta de um dia natimorto. Dia de eleição é dia neutro, de tempo parado. Domingo quente, alguns enfrentam filas para votar, reclamam. Minha seção é a calma em pessoa; e uma tristeza e uma alegria da minha vida é não ser mesária, ficar longe do burburinho midiático, não ver gente. Na sala de aula eles falam meu nome e assim, sinto um estremecimento novamente, aqui estou em mais uma eleição, mais dirigentes, mais vida, o indicador sereno na urna e o sentimento de impotência, do fracasso de um sistema.

E assim, unidos, estivemos num dia nulo e branco, em que a claridade tem sempre algo de mórbido e risonho. Santinhos espalhados pelo chão, como num ritual já previsto e aceito. Senhoras e senhores subindo mansamente os degraus, rumo ao dever de cidadão. Uma paz imperturbável de dia cívico, o quadro de Marechal Deodoro em permanência barbuda e plácida, um meio sorriso em cada boca dentro dos colégios eleitorais.

Foi então que, andando pelos corredores do colégio, reparei na estante de química e ciências. Estante antiga de madeira envidraçada, como sempre encontramos nas escolas. Entre crustáceos e répteis embebidos em formol, o conteúdo de um dos vidros de azeitona me chama a atenção. Relembro-o de outra eleição: um feto esbranquiçado boiando no líquido morto. De modo que, ainda mais fundo neste dia democrático, um brasileirinho sem nome, cuja vida e direito ao voto foram prematuramente decepados, num gesto definitivo estende ao pequeno rosto uma das mãos.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 11/10/2012

 

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