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Sexta-feira, 9/11/2012
Como amar as pessoas como se não houvesse amanhã
Ana Elisa Ribeiro

"É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã". É assim que começa uma canção da Legião Urbana que parou na minha cabeça. Ela sempre me vem, embora nem sempre transforme meus atos. E eu gostaria que essa e outras canções tivessem o poder de transformar meus comportamentos (e os de outras pessoas) com a mesma facilidade com que as canto.

A história de saber amar os outros, de cuidar de quem está perto, de saber que a recíproca é verdadeira, de curtir quem está vivo (enquanto está), de ter a exata noção de que ninguém é para sempre, de fazer bem a quem nos faz bem, enfim, todas essas obviedades... essa história só é óbvia lá entre nossos baús de conceitos. Na vida diária, no bate-estaca do cotidiano, o que fazemos é viver espirrando estilhaços nos outros e, principalmente, em quem está mais perto, mais abraçado, no convívio.

Bem que eu queria não dizer o que eu disse. Bem que eu adoraria não ter sido rude com quem primeiro me abriu a porta quando cheguei do trabalho. É sincero o meu desejo; não menos sincera é minha dificuldade de agir com mais distinção.

Outro dia eu disse que minha vida era chata. Quem ouviu, do ângulo lá dos próprios problemas (porque todo mundo os tem), me achou mal-agradecida, exagerada e similares. Com razão ou não, abri meu coração a me justificar: trabalho onde não quero, faço coisas de que não gosto, perdi minha autonomia e não consigo estar calma. É coisa que vem de dentro, não tem controle. Como a gente faz pra se sentir feliz e completo, sem estar? Só porque eu quero?

O portão se abriu e divisei, a uns três metros, um sorriso que queria me beijar. Os olhos verdes me davam as boas vindas. E eu desfiei um rosário de maledicências, um uivo de desalento por conta disto e daquilo, um nervosismo com todas as coisas que eu nem sabia que me incomodavam tanto. E aqueles olhos foram se apagando, se intimidando, se encolhendo até que só sobrou uma superfície lisa em que nada cola. E eu então perdi o contato com aquela figura carinhosa que vinha me dizer que a muda da roseira vingou.

O que quer dizer "amar as pessoas como se não houvesse amanhã"? Quer dizer sugar delas a melhor seiva que há, para então não se arrepender de tê-las perdido no coração; ou para não se lamentar olhando fotos que o computador perderá um dia; ou para não cansá-las com uma chuva de infelicidades diárias. Assim, nada vinga, de fato.

E eu acho improvável amar as pessoas. Não havendo amanhã, restará um hoje do qual somos incapazes de nos aperceber. É quando ele se converte em lembrança que a gente exclama: era isso! Mas não deu tempo de ser direito. Já me arrependi assim com a morte de alguém e talvez ainda colecione desses arrependimentos.

Estou falando ainda de amar as pessoas amáveis, aquelas mais próximas, como pais, irmãos, filhos. Essas são as pessoas a quem provavelmente nos ligamos mais, numa espécie de aprendizagem que vem com gosto, cheiro, sol e chuva. Mas e quando o amor se refere às pessoas que nos surgem pela vida afora?

Você faz algumas tentativas ao longo da vida; começa ali pela adolescência, talvez a infância, e chega à vida adulta com um breve (ou não) catálogo de incompetências amorosas. Talvez conte algumas histórias de sucesso e talvez alguma delas seja duradoura. E suponhamos que você tenha, também, alguma ocorrência de casamentos, ou um ou dois ou três, que hoje em dia eles podem ser múltiplos. E suponhamos, então, que você, que nunca pensou nisso, encontre um novo amor quando estiver perto dos quarenta anos e que esse amor tenha filhos. É, ainda mais, preciso amar as pessoas.

Quando vejo uma menina de 22 anos, eu sempre penso que ela tem chances de construir uma história de competências amorosas, incluindo-se aí a provável constituição de uma família consanguínea que talvez se ame. Quando eu me vejo aos 22 anos, penso que fui brincando de Deus aqui e ali, até que me vi enrascada. Bem, mas aos 40, você tem outras chances, talvez mais informadas e interessantes. Sua lista de "coisas que não quero" é grande e você tem melhor noção do que acha inaceitável.

Noves fora, você vai viver sua vida com o frescor que conseguir, mas terá um manual de sobrevivência bem mais completo e restritivo do que poderia antes. E então você não namora mais uma pessoa; você namora uma família, que, por sua vez, namora a sua família. Então você precisa saber como amar tantas pessoas que não faziam parte daquele desenho de árvore genealógica que você aprendeu na escola (e continua aprendendo). Ah, como aquilo é precário! Na era digital, na plenitude do link e das redes, as aulas de Biologia ainda insistem em desenhos lineares e unidimensionais.

É assim que as pessoas nos surpreendem. É dessa forma que a vida dança com você, dando a impressão de que é você que está marcando a cadência, mas não é. E então você precisa aprender a amar as pessoas que mais atinge, além de amar as que precisa adotar. A capacidade de gostar dos outros é imprescindível neste tempo de links quebrados e páginas viradas. Mas quem vai nos ensinar? Não é questão de comprar um dispositivo ou de fazer curso de autoajuda; é questão de construir um novo ethos, com tranquilidade para viver em um cenário menos fixo e desleal.

E seus problemas? Onde enfiá-los? Não me ocupei de procurar um psicólogo a cada problema que tive. Talvez eu não os tenha resolvido direito, sei lá (e alguém os resolve?). Mas eu pensava, sempre que alguém me indicava um número: "será que não posso ter problemas em paz?". O problema é amar e desamar, desarmar um amor rarefeito, descansar do costume de ser infeliz todos os dias e coisas assim. Mas será que hoje não se pode mais nem ter problema ou ser um pouco infeliz, naquela intermitência comum às coisas dos vivos? E as soluções para os problemas se pagam por hora? Não sei, não sei. Deixem-me aqui a curti-los, à espreita para a chegada de outras razões para esquecê-los. É o tempo, mano velho, o meu melhor amigo. E tenho cá comigo meu curso de "Como amar as pessoas como se não houvesse amanhã", no qual ainda não fui aprovada.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 9/11/2012

 

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