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Quarta-feira, 7/11/2012
'Linha de montagem', um filme a ser 'revisto'
Humberto Pereira da Silva

A Cinemateca Brasileira promoveu, em parceria com o NEAMP (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP), importante ciclo de filmes e debates, entre os dias 03 e 08 de outubro, sobre a representação cinematográfica da política e suas lideranças. Na programação, documentários essenciais com personagens políticos capitais de nossa história recente: "Getulio Vargas", (1974), de Ana Carolina, "Os anos JK: uma trajetória política" (1980), de Silvio Tendler, "Linha de montagem" (1981), de Renato Tapajós, "Jango", (1984), de Silvio Tendler, "Céu aberto" (1985), de João Batista de Andrade, "O Velho, a história de Luiz Carlos Prestes" (1997), de Toni Venturi, "Entreatos" (2004), de João Moreira Salles.

Um destaque inicial para o fato de que o documentário tem sido recentemente um dos meios mais utilizados no cinema brasileiro para exibir aspectos de nossa história política e cultural. O movimento tropicalista tem propiciado uma leva de filmes que elucidam e refletem a agitação cultural no final dos 60. O mais recente rebento documental dessa leva é "Tropicália", de Marcelo Machado, premiado no Festival de Gramado deste ano, teve ampla repercussão de crítica. Vale destacar, ainda, que se hoje a força do documental está centrada na cultura ("Marighella", de Isa Grinspum Ferraz, não teve mais que oito mil espectadores), ou nos artistas representativos da cena cultural, no início da década de 1980 essa primazia coube aos atores políticos. Nos anos finais da ditadura, JK e Jango renderam ao cineasta Silvio Tendler filmes que geraram e geram debates tanto quanto merecem ser vistos e revistos.

O ciclo de personagens políticos documentados no início dos 80 seria completo se não faltasse "Janio a 24 Quadros" (1981), de Luis Alberto Pereira. Eleito melhor filme da Mostra de Cinema de São Paulo em 1981, forma com os filmes de Tendler a tríade que, naquele momento, agitou as discussões sobre os três presidentes que governaram o Brasil antes do Golpe de 64. Ao lado de JK e Jango, Janio também é um filme que merece ser visto e revisto (é ingenuidade argumentar que Janio não foi uma liderança política...). Mas, se faltou o filme de Luis Alberto Pereira, o ciclo contemplou o importante "Linha de montagem", de Renato Tapajós, que trata das greves operárias de 1979 e 1980 em São Bernardo do Campo, portanto, tem como figura central o líder sindical Luiz Inácio da Silva.

Ver, ou rever, o documentário de Tapajós torna-se tão mais oportuno quanto mais se tem ao lado "Entreatos", de Moreira Salles, justamente sobre a campanha do candidato, então Luiz Inácio Lula da Silva, à presidência do Brasil em 2002. Ambos feitos no calor dos acontecimentos, com distanciamento nos dão ideia dos rumos que a política brasileira tomou desde os anos finais da ditadura. Num ciclo sobre lideranças políticas e cinema, recortar esses dois momentos nos propicia pensar não só sobre a atual eleição para a Prefeitura de São Paulo, mas principalmente, sobre a eleição presidencial de 2014.

O filme de Tapajós, nesse sentido, além da força inequívoca do retrato de época, se oferece como o mais acabado documento visual para se perceber as transformações sociais e políticas pelas quais o país passaria e que dariam o sentido das articulações de poder que finalmente levaram Lula à presidência da República em 2002. Mais do que mostrar a ascensão do líder sindical, e das condições e reivindicações trabalhistas da época, "Linha de montagem" traça subliminarmente o perfil político de Lula, um perfil cujos traços mais característicos estão prefigurados nas imagens captadas por Tapajós.

A força das reivindicações trabalhistas reside na organização e unidade dos trabalhadores. Trata-se, portanto, de um movimento vertical de baixo para cima. Sem a base de sustentação dada pela massa de trabalhadores, num momento em que a ditadura ainda era ativa, as greves teriam sido dispersadas e seus lideres devidamente calados. Mas, ao mesmo tempo em que se deve considerar o força vinda das bases, o que efetivamente impulsiona o movimento é a figura catalisadora e carismática de Lula.

O que se tem, então - sem que obviamente Tapajós tivesse a dimensão -, é o modo como a figura do líder se impõe nas esferas de poder. Vale dizer: a incrível intuição política de Lula para dialogar com a massa e negociar com as estruturas de poder. Nos termos do "Príncipe", de Maquiavel, os movimentos de Lula eram - e hoje se tem isso como evidente - orientados pela capacidade de jogar com a virtu e a fortuna. Por isso, por conta dessa capacidade de jogar com as circunstâncias favoráveis, ele se manteve e se mantém na seara política.

"Linha de montagem" modela um personagem cujo destino está traçado nos gestos, na força expressiva do momento e das circunstâncias. Ainda que Lula não tivesse consciência disso, com a ditadura em seus estertores, dissensões políticas dos segmentos tradicionais, emergência de novas forças sociais, a inevitabilidade do vazio de poder, a ser ocupado por atores políticos germinados naquelas circunstâncias históricas. O grande mérito de "Linha de montagem", com isso, é o de flagrar, nas entrelinhas, os condicionantes que fizeram de Lula a grande referência política no Brasil nos anos que se seguiram. Trata-se, por isso, de um filme fundamental para se entender tanto o teatro - ou a encenação política -, quanto a simbologia que gesta um momento e dita os rumos da história.

É nesse sentido que creio ser oportuno e conveniente ver, ou rever, "Linha de montagem". Os críticos de cinema, não raro, falam de filmes datados, filmes que com o tempo perdem força expressiva e se mantém como arqueologia de um período. Dos filmes do ciclo, sinto que, talvez, "O Velho", de Venturi, seja um tanto datado, na medida em que fica preso a um passado com verniz nostálgico. O Luiz Carlos Prestes de Venturi parece congelado no tempo. O mesmo não se pode dizer dos filmes de Tendler, tampouco do de Tapajós. Com esses filmes, em especial o "Linha de montagem", uma compreensão necessária do Brasil dos dias atuais.

Para completar, deve-se chamar a atenção para o grave problema de distribuição de filmes no Brasil. Mesmo se tratando de um documentário de valor histórico inconteste sobre um personagem dominante na atual cena política, "Linha de montagem" está em catálogo porque Renato Tapajós, o próprio diretor, é responsável por sua distribuição. Ou seja, não é um filme facilmente acessível. Isso revela um tanto das mazelas a que está submetida nossa produção cinematográfica. Mas revela igualmente que há um alerta que precisa ser apontado: louvemos a iniciativa da Cinemateca e do NEAMP; não nos esqueçamos, contudo, que iniciativas assim são esparsas, precisam, pois, ser estimuladas e continuadas; do contrário, filme como "Linha de montagem" continuará a ser visto por poucos e, com isso, quando se vê Lula hoje, uma compreensão torta do que ele efetivamente representa.

Humberto Pereira da Silva
São Paulo, 7/11/2012

 

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