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Quinta-feira, 29/11/2012
A vida sem assento
Elisa Andrade Buzzo


ilustra: Renato Lima

Preciso me sentar. Não por muito tempo, preciso me sentar por algumas poucas horas, não peço muito, apenas esperar e matar o tempo trabalhando. Mas preciso de um lugar para apoiar o corpo. Nem mesa peço, apenas cadeira em lugar relativamente seguro para encostar as costas. A esta altura, nem peço para encostar as costas mais, apenas para apoiar o quadril, as folhas e as canetas apoio no regaço, ou nem isso, suspendo as folhas ante meus olhos, porque as letras são pequeninas. De todo modo, não há onde se sentar e, em última hipótese, ficarei em pé, meio que encostada, num poste, num orelhão, num corrimão de escadaria, porque até para se encostar está difícil em São Paulo.

Preciso de um café, um café com uma pequena mesa, nada mais nada menos do que uma mesa minúscula onde eu possa pedir um pão de queijo, uma água, consumir o mínimo possível e encontrar apoio para papel e mente. Há alguns cafés no centro, mas estão todos lotados, essa vida é palpitante demais e parece que aos solavancos me coloca cada vez mais para fora de sua zona de influência. É desanimante a falta de espaço que uma cidade tão grande incute aos seus habitantes. Não há onde ficar, nunca há mesas nem cadeiras vagas, temos medo das praças, estou prestes a aceitar o desmoronamento das coisas, quando insisto, retorno, luto por um lugarzinho à sombra, debaixo do ar-condicionado, o tampo da mesa lascado, as pernas bambas. Sim! É preciso, é possível encontrar um lugar, uma moeda rara disposta no chão; e então a vida me coloca para dentro dela, gira nos eixos, como se para tanto fosse necessário pagar o quinhão da perseverança.

Não peço silêncio, encaro o ruído indistinto da soma das conversas. No meio de tanta gente estou só; seria um consolo aguardar alguém? Não, estou por mim mesma, a vida remexida e sugada pelo canudo. Agora já me dou ao luxo de consumir café gelado com chantilly, bolo de banana, croissant de frango, e a conta, ainda não penso nisso, ela fica para o final. O que importa é este momento de satisfação ilusória: eu tenho um lugar no mundo nesta cidade lotada e ninguém vai me tirar daqui antes das 22h. E isso nunca é o suficiente, há vazios a serem preenchidos, angústias que prosseguem a despeito da boca cheia. Viro a folha.

Gratuitamente, quero chegar num lugar, encontrar uma mesa e uma cadeira disponíveis num bom ambiente. Vou ao Centro Cultural. A esperança é a de que lá seja possível ver o luar, nem que seja dividir uma mesa, há todo tipo de estudantes, os de cursinhos, que tentam o vestibular, com suas apostilas grossas em espiral, folhas de fichário e canetas coloridas. Alguns, mais velhos, tentam concursos públicos e fazem suas amizades de mesa em mesa; um se apoia no outro. Naquela frente à minha, há um moço sério, de queixo duro, cabelo raspado e óculos. É um soldado dos estudos em sua trincheira de livros. Três tijolões e um eReader. Direito administrativo. Uma guerra de estudos silenciosa se desenrola, enquanto bem à minha frente o menino nem passou de dez páginas de uma introdução à engenharia, suas pernas compridas já trombaram em meus joelhos e cambaleia a fronte. Até que desiste e recosta a cabeça e os cotovelos no livro.

Acaso aqui, nesta vitrine de estudos fictícios, sossego tenho eu? Nestes espaços coletivos, amontoam-se revelações íntimas. Preciso agora me fixar num ponto − que se esvaneça em farelo de borracha, pó de queijo e grãos torrados esta paisagem que me fere e circunda −, e não pensar no que foi ou no que será. Mas me pergunto, o porquê, por que saímos em busca de um lugar e não permanecemos em casa? Se não há onde ficar, a cidade vai te empurrando pra fora, pra fora numa dança de cadeiras mais real do que nunca. Finalmente, já muito tarde na cidade sonolenta, consigo um assento no ônibus, sereno e volante.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 29/11/2012

 

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