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Sexta-feira, 11/1/2013
O fim do (meu) automóvel
Marta Barcellos

Comecei a economizar para comprar um carro aos 17 anos. Como tinha passado no vestibular para o segundo semestre, arrumei emprego em uma butique no primeiro e iniciei minha poupança. Ainda consegui juntar mais algum trabalhando durante os meses de greve na universidade, mas mesmo assim o sonho do carrinho próprio estava distante: só foi concretizado uns oito anos depois, porque virei chefe precocemente e o salário afinal melhorou.

Era um Chevette Hatch, azul escuro. Uma joia. Fiquei com ele até poder trocar por um Escort verde claro, com um item que então se tornava necessário: ar condicionado. Não, o problema não era o calor, mas os assaltos nos sinais de trânsito. Contabilizei quatro...

Quem tem idade para situar essa história já sabe que esses primeiros carros eram usados. Sabe-se lá quem comprava automóvel zero naquela época, antes de aparecerem os tais modelos populares. Por isso, além do perigo dos pivetes no sinal, havia as inevitáveis visitas ao mecânico. Pode parecer uma vida difícil para uma mulher que dirigia pela cidade sozinha, ia e vinha do trabalho e dos barzinhos (não existia lei seca) todo dia, dava carona para os amigos. Mas eu adorava. O carro era um símbolo da minha independência, da libertação da vida anterior, esta sim, dura, de sacolejar por horas dentro de ônibus que podiam demorar a passar e nem parar no ponto. Não havia hipótese de eu voltar a ser uma desmotorizada.

O carro era como uma continuação do meu corpo, porque me possibilitava ir aonde eu quisesse, escolher a minha aventura, e também me sentir em casa antes de voltar para casa. Era tão apaixonada pelo meu primeiro carro, o mais simplesinho, que fiquei danada quando soube que o amigo para quem eu o vendera tinha amassado toda a sua frente. Sempre fui orgulhosa de dirigir bem.

Minha relação com automóveis nada tinha a ver com aquela que depois observei em outras pessoas, especialmente quando fui morar em São Paulo. Nunca soube identificar carro pela marca na rua, e ignorava que também pudesse ser um símbolo de status. Quando percebi este tipo de comportamento, não botei na conta do carro, mas na de seus donos - quem ostenta sempre tem um quê de brega.

Recordo tudo isso aqui porque, há um ano, venho tomando coragem para vender o meu carro. Ele é vermelho, depois de muitos prateados. "Estou pensando em vender o meu carro", eu digo, "vender para não comprar outro", explico, e, ao mesmo tempo, me testo, verifico o quanto ele ainda é necessário no meu dia a dia. Para quase todos os meus deslocamentos, tem sido mais prático usar o ônibus ou ir a pé. O trânsito se tornou um inferno, o prazer de dirigir foi para a cucuia e os estacionamentos estão pela hora da morte.

Naturalmente, às vezes fraquejo e arranjo uma desculpa para pegar o carro. Está chovendo. Naquele dia precisarei ir a vários lugares diferentes. Ou carregar coisas pesadas. Mesmo assim, acabei me adaptando a uma vida com mochila nas costas e calçados confortáveis: tenho o privilégio hoje de trabalhar e estudar relativamente perto de casa. Com as obras do metrô tomando conta do bairro onde moro, a decisão de aposentar o carro parece ainda mais acertada.

É moderno, é ecológico, mas... o que fazer com todo o meu passado de motorista feliz e orgulhosa? Afinal, foi assim que a indústria automobilística e toda uma leva de políticos que nunca investiram em transporte público me forjaram. Leio que os jovens hoje não dão o mesmo valor de antes para automóveis: a mobilidade é garantida por tablets e smartphones. Melhor assim. E tomara que os mais novos batalhem pela eficiência do metrô e do ônibus, e briguem com quem compra carrão que atravanca e polui as ruas. Quanto à bicicleta, novo símbolo do jovem urbano descolado e sustentável, não consigo ser otimista no curto prazo.

Por trás de um aparente consenso entre autoridades e ciclistas - todos são a favor da bicicleta como transporte - percebo a tensão aumentando na medida em que as regras não são definidas e o sonho da vida de bicicleta ganha as ruas de verdade.

Veja o caso do Leblon, bairro que acaba de ter várias vias interditadas por causa da construção da Linha 4 do metrô. Os moradores, que sempre se gabaram de fazer tudo a pé na região (isso era até piada), agora estão sendo convocados pelo prefeito a comprar bicicletas. A promoção de Natal da vez, em lojas e shoppings, é o sorteio de bicicletas elétricas, candidatas a novo sonho de consumo dos moradores da zona sul. Mas não há ciclovias suficientes nem campanhas educativas sobre onde e como bicicletas podem conviver com carros e ônibus nas mesmas pistas.

Esta semana, vi um pedestre irritado com uma bicicleta elétrica na calçada, agora mais estreita por causa dos canteiros do metrô. Já posso imaginar o jovem ciclista decepcionado com o engodo do sonho que comprou. Assim como eu apostei no carro, influenciada por uma poderosa rede de interesses, hoje o ciclista pode estar sendo usado por autoridades que não sabem lidar com o conflito já armado: continuamos sendo um país movido pela indústria automobilística, e apelos como "usem bicicleta" só fazem sentido dentro de um novo planejamento urbano que reveja este projeto inicial.

Por enquanto, o que temos são obras pontuais decididas às pressas por causa da Copa e da Olimpíada. Quem sabe os jovens, ciclistas e adeptos conscientes dos transportes públicos, consigam se mobilizar com seus tablets e smartphones para mudar essa realidade.


Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 11/1/2013

 

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