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Quarta-feira, 16/1/2013
Voto em qualquer um!
Marilia Mota Silva

O sistema de transportes que integra a Europa é uma das maravilhas do mundo. O de trens especialmente. Não consta da lista oficial talvez porque uma infinidade de trilhos não evoque transes estéticos. Mas é um feito admirável! Pode-se viajar por todo o continente, visitar grandes centros e vilas remotas sem usar outro meio de transporte. Metrô, trens antigos, grafitados, trens modernos de alta velocidade, trens internacionais e suburbanos funcionam integrados. Com preços acessíveis e pontualidade.

Nas cidades, a coisa se repete: bondes, ônibus, metrô e barcos limpos, confortáveis, a serviço de todos. Não há nada mais democrático.

Passei novembro e começo de dezembro entre França e Itália, com rápida incursão por Genebra e Frankfurt para visitar amigos. Fui, fomos, sem planos, meu companheiro e eu, a não ser o de evitar o norte por causa do frio e não alugar carro. A ideia era viajar leve - levamos só mala de mão - e simplicar ao máximo. Trem permite isso. Em torno das estações há hotéis a escolher, para qualquer nível de exigência. Fora de temporada, sempre há vagas.

E assim fomos de Genebra-Pompeia, parando pelo caminho; na volta, Milão, Torino, Nice, Avignon, Lyon, Strasbourg, Frankfurt e Paris. Sempre de trem, com uma exceção: de Ravenna a Roma.

Depois de alguns dias de mergulho na história, em catedrais, museus e estações ferroviárias, meu companheiro começou a falar sonhadoramente nos confortos do carro.

Em Ravenna, costa leste da Itália, passamos o dia encantados com os mosaicos, as muralhas, andamos pela cidade antiga, em ruas sem calçada sob uma chuvinha fria, insistente.

Ele falava em nos perder por estradinhas secundárias, conhecer lugares afastados em que o trem não para, experimentar a comida e os vinhos locais. Achei bom e foi o que fizemos: nos perdemos. Muitas vezes! Fomos para o sul, pela costa e, a certa altura, viramos para oeste, na direção de Florença. Sempre fugindo de auto-estradas, nessa busca do local, do autêntico, enveredamos por uma estradinha espremida entre o paredão da montanha e o precipício, com redes de aço agarradas à encosta bruta, cheias de pedras despencadas.

Estradinha bem sinalizada quanto aos ângulos das curvas, altitude, deslizamentos; só não havia indicação do destino da estrada. Parecia não ter fim, não ter saída: subia em curvas de vinte a quarenta graus na maioria, só para descer e subir de novo, e subir, descortinando a cadeia de montanhas, os vermelhos e dourados do outono, e nuvens se esgarçando sobre o vale. Ou neblina. Paisagem olhada de relance porque íamos em velocidade robusta, forçados pelos locais, já que estrada assim não permite ultrapassagem, não tem acostamento, e só ás vezes se viam vestígios da faixa branca que costuma separar as duas pistas.

Quando já estava escuro o bastante para que os sinais de tinta luminosa começassem a brilhar nos postes finos que marcavam os pontos mais perigosos, saímos do sufoco.

Somos pessoas experientes, mas isso pouco vale. Cruzamos os Apeninos desavisadamente e pela estradinha mais modesta, entre outras que decerto deve haver. Para quem esqueceu as lições da escola, como eu, os Apeninos percorrem o centro da Itália, no comprimento, como uma espinha dorsal. Recomendo para quem gosta de esportes radicais . A paisagem também é inesquecível.

Paramos em Stia, cidadezinha perto de Florença, e continuamos de carro mais alguns dias, seguindo pela costa, sem sustos dessa vez a não ser o fato de encontrar os hotéis todos fechados, cidade após cidade - só abrem no verão. Em Santa Severa, perto de Roma, encontramos pouso finalmente. O restaurante do hotel estava aberto e nos aceitaram como hóspedes.

"Carro, na verdade, é coisa do passado", começamos a filosofar, assim que nos livramos do dito no aeroporto Fiumicino, num sexto andar de garagem onde a locadora se escondia. "É expressão perfeita do pior capitalismo. Individualista, poluente, cria montanhas de lixo". "Pode olhar, não há país desenvolvido sem um sistema de transporte decente. Existe? Não."

"No Brasil, eu votaria em qualquer que se propusesse a construir uma rede de trens que integrasse o país inteiro. Não precisaria fazer mais nada. Imagine as consequências imediatas e a longo prazo. De milhares de empregos imediatos à integraçâo de todos a barateamento de tudo pelo futuro afora!"

"Eu também votaria", disse a mulher que esperava o elevador a nosso lado. Brasileira! "Mas não acredito. O Brasil tem compromisso com o atraso." Sorriu abanando a cabeça em desalento. Sorri de volta do mesmo jeito. Mas acredito, sim, acredito em nós. Um povo que sobreviveu a anos de inflação corrosiva, um problema que parecia insolúvel, vai vencer também a corrupção endêmica e demandar projetos que beneficiem a todos, especialmente os mais humildes. Difícil mas não impossível.

Marilia Mota Silva
Lyon, 16/1/2013

 

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