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Quarta-feira, 23/1/2013
Lula, ardis do poder e destino
Humberto Pereira da Silva



1. O primeiro governo Lula (2003-2007) foi abalado pelas revelações explosivas do deputado federal Roberto Jefferson (PTB-RJ). Num episódio que passa à história como o "escândalo do Mensalão", Jefferson denunciou que deputados da base aliada recebiam uma "mesada" para votarem a favor de projetos de interesse do Poder Executivo. Os principais envolvidos com suas declarações foram José Dirceu (ministro chefe da Casa Civil), José Genoíno (presidente do PT), Delúbio Soares (tesoureiro do PT) e Marcos Valério (empresário e operador do "Mensalão"). O presidente Lula, no entanto, foi poupado das acusações. Sete anos após, os delatados por Jefferson foram condenados pela Justiça; a Marcos Valério, a pena de 40 anos de prisão. Cônscio da pena, Valério, que alegou inocência o tempo todo, abre a boca e, agora, relata que o presidente Lula teve contas pagas com dinheiro do "Mensalão".

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2. Em 2011, antes do julgamento dos envolvidos no "mensalão", portanto, José Nêumanne Pinto publicou O que sei de Lula (Topbooks, 522 pág.). Nêumanne, jornalista bem conhecido, trabalhou nos principais jornais do Rio de Janeiro e São Paulo (Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo) e esteve ligado também às esferas do poder: foi assessor político e ghost writer do senador José Eduardo de Andrade Vieira, ex-ministro da Indústria, Comércio e Turismo no governo Itamar Franco (1992-1994); atualmente é comentarista diário da rádio Jovem Pan ("Direto ao assunto") e do SBT, além de editorialista do Estadão. Nêumanne relata que conheceu Lula pessoalmente em 1975; na época, em plena ditadura, Lula acabara de assumir, em substituição a Paulo Vidal Neto, a presidência do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo e Diadema. Seu nome teria chamado a atenção da cúpula militar: o general Golbery do Couto e Silva, depois de reportagem do Jornal do Brasil sobre o perfil do operariado brasileiro. Nêumanne diz que participou de encontro em que um representante de Golbery tentou seduzir Lula para se alinhar ao processo de distensão política que foi levado adiante pelo governo do general Ernesto Geisel (1974-1979). Mas Lula teria se recusado, com o argumento de que à classe operária interessava apenas reivindicar melhorias salariais.

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3. No livro de Nêumanne, relatos colhidos pessoalmente, entrevistas, biografias, estudos acadêmicos e sua presença ocular, como jornalista, em diversas circunstâncias da cena política brasileira. De posse desse material, seu relato procura dar sentido à construção do maior mito político do Brasil na virada do século XX para o XXI. Trata-se, claro pelo título, de um retrato pessoal - o que ele sabe de Lula; trata-se, claro também, de um retrato com parti pris: Nêumanne é simpatizante do PSDB, tanto quanto crítico ferrenho do governo Lula. Na construção que propõe, algumas ideias são exibidas e repetidas à exaustão.

Nas condições de pobreza e desajuste familiar em que Lula nasceu e passou a infância, as chances de chegar à presidência da República eram praticamente zero; sua trajetória política, da entrada casual na presidência do sindicato (uma manobra de Paulo Vidal para se mantiver no poder e colocá-lo como "testa de ferro") à garantia de que fez de Dilma Rousseff sua sucessora na presidência da República, é uma sucessão incrível de acasos favoráveis e golpes de sorte; inicialmente inexpressivo e manipulado por Paulo Vidal, súbito Lula torna-se hábil negociador, orador com sensibilidade para seduzir a massa e, principalmente, dotado de capacidade e clarividência incomuns para perceber as articulações do poder.

Com essas ideias frequentemente repetidas, Nêumanne constrói a trajetória política de Lula. Nessa trajetória, ele moveu de posição sempre com sentido afinado para as conveniências e, igualmente, se esmerou em atrair para seu círculo de interesses quem, por força das circunstâncias, lhe conviesse. Nesse sentido, uma "metamorfose ambulante", cujo projeto político foi sempre impulsionado pela tomada e manutenção do poder: primeiro no sindicato; finalmente, na presidência da República.

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4. "Lula seria capaz de pisar no pescoço da própria mãe para chegar ao poder", frase atribuída a Leonel Brizola e constantemente lembrada por Nêumanne; mas também, numa referência à mitologia grega - Saturno devorando seus filhos -, invoca que a história ensina que o criador sempre foi devorado pela criatura. Com essas duas ideias, ele enfatiza que Lula jamais se moveu por princípios éticos e sim por conveniências. Sua postura, invariavelmente cínica e desdenhosa, atropela o que não lhe convém e faz valer seus estratagemas e excentricidades para atingir seus objetivos. Mas ao mesmo tempo deixa em aberto que os exemplos da história mostram não haver criador que não tenha sido devorado pela criatura. Exemplo clássico: Júlio Cesar venceu Pompeu, se impôs no poder e preparou seu filho, Brutus, para substituí-lo, mas este o traiu. Assim, supõe Nêumanne, Lula venceu Fernando Henrique Cardoso (naturalmente, seu legado político), preparou Dilma para substituí-lo e, vaticina, em algum momento pode ser traído por ela. No movimento da história proposto por Nêumanne, o próprio Lula, figura inexpressiva no movimento sindical, chegou onde chegou ao trair Paulo Vidal.

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5. Ao longo do livro, um esforço descomunal para mostrar que o mito Lula foi forjado em mentiras, desfaçatez, cinismos, falácias e aproveitamento da boa fé de miseráveis incultos nos grotões do país. Em igual medida, esforço descomunal para mostrar a inépcia dos sábios do PSDB e oposição em geral para entender a psicologia da massa. Oposição e massa inculta estão presas aos caprichos de um líder que, em última instância, joga com as regras da democracia porque no quadro político pós-ditadura lhe é conveniente. Esperto, percebeu os riscos de um terceiro mandato.

Digno de nota. Na Realpolitik de Nêumanne, Lula teria sido criado pela própria ditadura, que, com a distensão, temia a influência de Leonel Brizola no sindicalismo de origem getulista.

Criado pela máquina do Estado ditatorial, ele ganhou vida própria e abafou as elites carcomidas e incapazes de perceber os ventos do tempo. Ardis do poder, ou ironias do destino: com pouquíssima instrução, praticamente analfabeto em história, sociologia e no domínio da última flor do lácio, Lula pressentiu e viu o que estava embaçado aos olhos tanto de ilustres bacharéis quanto de militares. Com autonomia para agir, após o desmoronamento da ditadura, não teve escrúpulo para fazer pouco caso e desdenhar da lei, das instituições e das liberdades, que teve nele um de seus ícones. Exemplo mais visível: Lula não extraditou o ex-guerrilheiro Cesare Battisti, a pedido da justiça italiana, e o acolheu como refugiado político.

Ou seja, Lula ganhou voo próprio e não há rédea que o segure. Esse não deixa de ser um terrível diagnóstico sobre a construção do mito Lula, com seus efeitos na condução da vida política do país. O livro de Nêumanne não pôde dar testemunho da vitória de Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo; depois de Dilma, outro poste que Lula pôs, estrategicamente, no poder.


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6. A construção do mito Lula proposta por Nêumanne se sustenta no seguinte ponto básico: num golpe de sorte, ele soube ocupar espaço deixado pela guarda baixa dos antigos "donos do poder": "A lógica mais cabal e mais direta da política brasileira é que não se governa pelo bem da coletividade ou por algum ideal, mas simplesmente para não sair do poder. O que Lula conseguiu foi entender essa lógica aristotélica e encontrar uma fórmula, baseada na experiência pessoal e nos fiascos próprios e alheios, para realizar aquilo com que todos sonharam" (grifo meu; pp. 456-7).

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7. Sim, esse o ponto exato em que todo o edifício de José Nêumanne Pinto desmorona. Por ironia, de modo jocoso ele atribui a Lula pouca instrução e fuga das aulas de história, mas igualmente ele fugiu das aulas de filosofia política. Para Aristóteles, sim, a práxis política consiste na busca do bem comum, ou da coletividade: o bom governante é aquele que pratica o bem em proveito do interesse da polis. Ética e política em Aristóteles se entrelaçam. Quem quebra essa máxima é Maquiavel, que separa ética e política e afirma que o bom governante é aquele que toma o poder e faz de tudo para mantê-lo. Para Maquiavel, o governante que se pauta por princípios éticos e não consegue manter o poder causa males maiores que aquele que se pauta simplesmente pela manutenção do poder.

Avexado, Nêumanne misturou as bolas. Mas não é o caso de seguir com um apontamento dos erros de filosofia política, ou incursões históricas e sociológicas, cometidos por Nêumanne. Há vários e este exemplo basta. O que creio ser importante é ressaltar como, com a citação destacada, a construção do edifício no qual tenta exibir o mito Lula sustenta-se - para fazer uso de uma expressão que ele lança mão exaustivamente - em "pés de barro".

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8. Como foi exposto acima, Nêumanne faz grande esforço para mostrar que o mito Lula foi construído de mentiras, desfaçatez etc. Isso supõe que FHC, Collor, Sarney, os militares, seriam menos hábeis que Lula para mentir? É no mínimo insensato pensar assim. Com isso, embora talvez não perceba, Nêumanne acaba por fazer o maior elogio que Lula podia receber. FHC, Sarney, não fizeram sucessores, não mentiram como Lula e naufragaram (assim é a lógica cabal da política brasileira). Lula, a se levar em conta o pressuposto de que no Brasil nenhum governante governa pelo bem comum, é, nas palavras de Nêumanne, o mais bem sucedido presidente que esse país já teve. Não sou eu quem faz essa afirmação, mas José Nêumanne Pinto. Do contrário, seu livro é um profundo nonsense.

Lula encontrou a fórmula que outros sonharam e não conseguiram! Ora, Nêumanne, que não confessa ter fugido das aulas de história, parece ignorar o movimento da história e atropelar sua própria lógica (a criatura trai sempre o criador). Lula, ou o lulismo, tem 12 anos no poder; os militares ficaram 21, o getulismo, com lacunas, rondou nas esferas do poder de 1930 a 1964. Nada garante que não tenhamos surpresa até a eleição presidencial de 2014. As recentes declarações de Marcos Valério podem cair no vazio, mas... num país como o Brasil, o movimento da história é mais ciclotímico do que qualquer observador desavisado possa imaginar.

Além de seus acólitos, claro, o mito Lula também é sustentado por seus detratores, como nesse livro de Nêumanne Pinto. Lula dominou a cena política brasileira nos últimos anos. Para isso, contou com grande dose de intuição e sorte; nas palavras de Maquiavel, virtu e fortuna.

Mas a coisa para por aqui, pois se não há necessidade de dar sentido ao que efetivamente Maquiavel entende por virtu e fortuna. Sem que pense no assunto, Nêumanne sustenta que os movimentos armados, a fortuna para os militares, garantiram a sobrevivência da ditadura. Essa mesma fortuna lhes escapou e, sem ela, Lula entra em cena. A roda da fortuna gira e o que se tem com Lula não é nada além de suas contradições e dos acasos do destino.

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9. Nêumanne detrata Lula, põe o dedo na ferida da oposição, mas trabalha de modo excessivamente avexado (precipitado, na linguagem cartesiana) o enorme acúmulo de informações de que dispõe. Exemplo cabal é quando trata da Bolsa Família. Alvo de crítica contundente, de fato é um programa assistencialista difícil de engolir. Só que, entre os ardis do poder, como a Bolsa Família foi instituída, criticá-la significa dizer o que havia no lugar, ou o que devia haver e nunca houve na história desse país... Qualquer programa assistencialista anterior, e Nêumanne recorda iniciativa de FHC, não teve a dimensão dada por Lula ao Bolsa Família.

Quer dizer, e isso é horroroso concluir, com Lula, o Estado, os miseráveis têm alguma chance de escapar da fome por outra via que não a do crime (seduzido pelo consumo, o miserável mira o modo de vida da classe média; e a caminhada mais casual nas periferias dos grandes centros desmonta qualquer sociologia de boteco que negue a equação fome e criminalidade). Na crítica à Bolsa Família, é essa lógica maquiavélica - e não aristotélica - que parece escapar. O bem pode surgir por caminhos inesperados e pouco nobres. E assim, para os miseráveis, ruim contigo, pior sem ti. Este o mea culpa que Nêumanne e oposição devem fazer. Claro, claro..., isso alimenta ódios, separações...

Humberto Pereira da Silva
São Paulo, 23/1/2013

 

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