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Terça-feira, 29/1/2013
Discutir, debater, dialogar
Duanne Ribeiro

Uma boa porção do meu tempo é gasta com discussões online. Você pode dizer que sou como o sujeito desta tirinha: vou me preocupar (talvez excessivamente) com o convencimento, a contestação, o aperfeiçoamento de uma ou outra ideia, mais por impulso do que por princípio. Embora, é claro, isso envolva princípios: o mais fundamental sendo a crença em um debate público do qual fazemos parte querendo ou não, participando através do nosso silêncio ou da nossa fala. Trata-se de uma malha de interconexões infinitas, e, se sou um ponto no circuito, posso qualificar o fluxo, interrompê-lo, encorpá-lo, modificá-lo.

Este texto ele próprio é um gesto nesse sentido, pulso elétrico que percorrerá tal malha de muitas maneiras e alcances, perceptíveis ou não. É difícil que você não compartilhe, portanto, da minha crença: as 131 palavras anteriores te atingiram, você provavelmente já se posicionou mesmo que só emocionalmente em relação às ideias essenciais que te passaram (o que seja minha personalidade, a visão de mundo que expus, a tese sobre o status desta coluna). Suas conclusões atuais e as posteriores são movimentos que tiveram ensejo por conta daquele pulso. Mudar, encorpar, interromper são escolhas suas. E assim por diante, de você aos outros.

Isso tudo, obviamente, vale para discussões além da internet, mas me foco nessa mídia porque é com ela que lidamos neste momento. Eventualmente direi coisas surpreendentes como: os "debates da internet" são debates reais, com efeitos na "realidade"; o pessoal "da internet" está também fisicamente em algum lugar, da mesma forma que você digitando palavras num aparelho; que um troll não é qualquer indivíduo que discorde de outro indivíduo, jamais alguém que provoca um debate, mas alguém que prejudica, impossibilita um debate; e, chocante!, as pessoas que discordam da sua posição têm motivos pra manter as delas.

Eu aprendi algumas coisas em alguns desses anos de discussão, e acho que atingi uma evolução significativa. Quero compartilhar quatro lições que aprendi vagarosamente, e que contrario de vez em quando.

Atenha-se ao seu propósito
Você tem que saber pelo que está discutindo, qual a ideia ou grupo de ideias que de fato lhe interessa transmitir. Imagine que estamos discutindo a legalização ou criminalização do aborto. Alguém elenca o argumento da sacralidade da vida; seu objetivo pode ser tão somente apontar que o termo vida é condicionado, ou seja, ele só pode ser entendido dentro de certos limites. De maneira que um qualquer que seja contrário ao aborto não é necessariamente vegetariano, nem mesmo crê que uma mosca ou barata possa esconder o Buda. Em outros termos, você diria: "Quando você diz vida, você já assume algumas princípios que a definem".

Seu propósito pode ser apenas o esclarecimento desses princípios. Não contesta que seja sagrada, não se envolve em disputas sobre a liberdade da mulher, a dor causada ou não ao embrião (até oito semanas de gestação) ou feto, etc. O campo do debate é extenso, e você selecionou aí uma fração somente. Deixe isso claro: se os rumos da conversa se dispersarem muito, reafirme suas teses básicas.

Renato Janine Ribeiro perguntou: "Por que temos de ter opiniões como pacotes?" - e é isso que está em jogo aqui: debates são feitos de séries de ideias, e elas são discutíveis separadamente. É possível estar certo e errado ao mesmo tempo. Há a mistura de ignorância e erudição no mesmo discurso. Sua participação desenha linhas específicas no campo extenso da discussão. Não se perca delas.

Não se atenha ao seu propósito
Porém reconheça que o campo recortado por essas linhas é extenso. Por um lado isso implica às vezes a discussão de várias ideias periféricas ou anteriores ao que se pretendia discutir. Suponha que a pauta é a retirada ou não da frase "deus seja louvado" das notas de Real, e lhe provocam com o que seria uma consequência: o nome de estados como São Paulo e Espírito Santo teriam de ser mudados e festas como o Natal excluídas do calendário. É um deslocamento interessante, além da sua linha de argumentação, mas possivelmente perturbador. Cabe aí procurar se há qualificativos que diferem uma coisa da outra (). Ou, para manter sua tese, você pode ter de afirmar a própria justificação de um estado laico.

Por outro lado você pode perceber a fraqueza do seu recorte. Por exemplo, frente à pergunta "você é a favor ou não da PM na USP?" as respostas sim ou não podem apenas dissimular a existência de uma variedade de debates implícitos. O reitor da USP e o tipo de relações que tem com a comunidade universitária; o histórico da Polícia Militar, seus problemas atuais, as dificuldades do modelo não-civil de policiamento; a infraestrutura da universidade (iluminação, guarda particular); a atuação de movimentos sociais e as respostas governamentais a eles. Sem visão íntegra, não se estará respondendo de fato à pergunta, a não ser que queiramos ficar na mera polêmica. Como disse Francisco Bosco, "o dissenso entre pessoas não garante que se transcenda o senso comum".

Suas ideias não são parte de você
No mesmo texto, Bosco também comenta: "Um sujeito que defende uma posição tende a identificar-se com ela, e então a sustentação de seu ponto torna-se a sustentação de seu próprio eu. Daí surge o conflito: a agressividade brota do imaginário (a autoimagem do eu) que se sente ameaçado pelo outro eu, o outro imaginário. Sob a superfície do simbólico, travasse uma luta imaginária, e é assim que o dissenso logo engendra a discórdia". Há um perigo de personalização toda vez em que se entra num debate, assim que o estímulo para continuar se dissocia das razões pelas quais uma ideia é acertada e passa se vincular ao nosso orgulho.

O ideal é perceber quando isso acontece e tentar evitar, ou apontar isso no outro quando achar que é o caso. Nada fácil, claro, no entanto mais fácil na internet ou em qualquer discussão escrita, já que você pode efetivamente parar e se afastar.

Seu objetivo é competir ou debater? Tenha a resposta em mente. Pare, abandone, assuma o que não sabe (não saber é 99% da nossa atividade intelectual). Corte as provocações, a não ser que haja um motivo para elas. Tendemos a escrever como pensamos, mas se seu pensamento se formula (por exemplo se referente ao que se usa chamar "bolsa-bandido") "Isso é estupidez, não é que damos um benefício para um criminoso, mas resguardamos sua família de um dano maior" - você se afastará de um conflito tosco se excluir o inútil "isso é estupidez".

Não "respeite a opinião alheia"
Ainda nesse sentido: saiba concordar. Deixe evidente os pontos com os quais se está de acordo. As pessoas num debate podem estar simultaneamente próximas e longínquas, e erigir um mapa preciso não só dá solidez ao diálogo como funda o espaço de ideias em uma relação de coabitantes, não de inimigos.

Mas não se reduza à essa caricatura da civilidade expressa pela frase "respeitar a opinião alheia". Por que é que se respeitaria assim por nada uma opinião? Ideias estão aí para serem postas na rua, apanhar, apanhar e ver se ficam de pé. Quando endeusamos um respeito abstrato, incondicional, o que fazemos é isolar cada um em uma redoma antipensamento, que não faz bem a ninguém.

Porque pensamento é movimento, e existe um valor no choque. Mesmo que após discussão explosiva feita não cheguemos a lugar nenhum: estaremos um passo diminuto além da certeza cheia de si, como se multiplicássemos a opinião por um - e tudo fosse o mesmo, não obstante algo de sutil se transformasse.

Duanne Ribeiro
São Paulo, 29/1/2013

 

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