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Quarta-feira, 20/2/2013
O Precioso Livro da Miriam
Marilia Mota Silva

Saga Brasileira, a Longa Luta de um Povo por sua Moeda, de Miriam Leitão, foi leitura recente no Círculo do Livro de que faço parte. O grupo se dedica à ficção escrita em língua portuguesa, mas às vezes abrimos exceção para livros sobre nossa história. Como de outras vezes, valeu a pena. Tivemos uma das mais vibrantes entre nossas sempre animadas discussões.

Houve quem criticasse o estilo, o excesso de adjetivos e o vai-e-vem cronológico; houve quem considerasse o título inadequado: Saga? Muito pretensioso. Houve quem fizesse questão de esclarecer que não se considera fã incondicional das ideias da autora, mas reconhecia a fidelidade com que ela reconta a história. Restrições feitas, o mais foi entusiasmo.

Lembranças adormecidas emergiram com veemência. Os períodos de entressafra em que os produtos, especialmente a carne, desapareciam; a tragicomédia da caça de bois no pasto; os congelamentos e seus inevitáveis fracassos, a repetição dos erros; o supermercado fechado em nome do povo. O sofrimento dos mais pobres mal sobrevivendo, e a extrema concentração de renda nas mãos dos mais ricos, a inflação incontrolável, realimentada pela ORTN. O sequestro do dinheiro, a implementação predatória do plano mal pensado.

Nunca pensei que um livro sobre dinheiro pudesse ser tão pouco árido. Li com a respiração suspensa, comovida muitas vezes!, foi o sentimento expresso de várias maneiras. Precisamos de mais livros como esse. Devia virar documentário, passar na tevê e nas escolas!, a conclusão unânime.

A leitura é mesmo fascinante. A recuperação dos acontecimentos foi não só fiel do ponto de vista jornalístico como extremamente criteriosa e emocionante. Como editora de economia, Miriam se encontrava em situação privilegiada, com acesso às fontes geradoras dos fatos, os que faziam acontecer, e ao outro lado, os que sofriam as consequências das decisões atrapalhadas. Ela teve a inestimável oportunidade de conhecer pessoas no Brasil inteiro, de testemunhar suas histórias no calor dos acontecimentos. E esse é outro mérito do livro: o retrato que emerge de seu relato, o retrato de quem somos.

Não faz muito tempo, estávamos sempre nos perguntando qual seria a identidade do brasileiro. Além do idioma e do futebol, o que nos caracteriza? Quais os traços comuns a povo tão diverso, distribuído em território tão extenso e tão pouco integrado? Parecia impossível responder a essa pergunta.

Baseado na vivência dos fatos e não em abstrações e preconceitos, esse livro nos mostra um povo incansável, acreditando sempre, disposto a lutar se tiver como, capaz de resistir e se adaptar com rapidez e admirável inteligência. Não somos Macunaíma, não sofremos de preguiça ou de falta de caráter. Não somos cínicos vagabundos ou criminosos apesar de todos os exemplos que vem de cima. Embora tentem nos impingir essa crença, os fatos a desmentem. A massiva maioria dos pobres e classe média trabalha duro.

Um exemplo que diz muito: Ano após ano, somos campeões do mundo em reciclagem de latinhas, e certamente não é por consciência ecológica. Se fosse, os espaços públicos seriam limpos, rios e mar não estariam poluídos. É porque os mais humildes correm atrás de qualquer oportunidade que lhes dê sustento. Outro exemplo, a praia de Copacabana, vista como símbolo da aversão do carioca ao trabalho. Chegue lá cedo, mal o dia nasce, especialmente em feriados e observe a multidão de gente humilde que chega a pé, em vans, puxando burros-sem-rabo com cargas de côcos recém colhidos, cadeiras de aluguel, barracas, limonada, cangas, chapéus, biscoitos, milho verde, carrinhos de criança, pedalinhos, a lista seria infindável; às vezes parece que há mais gente trabalhando do que turistas na praia. Ainda assim prevalece o estereótipo da vagabundagem. Qual a razão disso? Povo humilde, com baixa auto-estima não reivindica. Voltando ao livro:

A certa altura, Miriam se surpreende com a constatação de que, em tão pouco tempo, parece termos esquecido a luta que travamos para conquistar uma moeda respeitável. Acho que "esquecer" é uma defesa natural do organismo. Vivemos sob tensão aguda, submetidos a toda espécie de abuso dos que estão no poder, em todos os níveis. É um escarnecer, uma violência incruenta mas constante. E não encontramos um meio eficaz de reagir.

E mais: hoje temos acesso instantâneo a qualquer informação, os hiperlinks nos oferecem recursos infinitos, mas, por isso mesmo, ao final do dia o que temos muitas vezes são fragmentos, uma coleção de dados, camadas de informação paralelas, uma cacofonia.

Precisamos mais do que nunca de narrativas como essa, com começo, meio e fim. Narrativas que nos deem senso de continuidade, de identidade, de comunidade, que nos deem perspectiva de quem somos, que caminho percorremos, o que foi erro, o que foi acerto, o que podemos superar e construir. Se vencemos uma inflação "congênita", venceremos o cancro da corrupção institucionalizada. É possível, o STF já mostrou que sim.

Marilia Mota Silva
Rio de Janeiro, 20/2/2013

 

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