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Sexta-feira, 22/3/2013
Sábia, rubra, gorda (e gentil)
Adriana Baggio

Capa do guia Use-it (link no final do texto) ilustra com bom humor o epíteto de Bologna.

Hoje, o dia em que escrevo esse texto, faz exatamente um mês que estou morando em Bologna, no centro-norte da Itália. Vim estudar semiótica e realizar parte da minha pesquisa de doutorado. Uma das primeiras coisas que aprendi sobre a cidade foi seu apelido: la dotta, la rossa, la grassa. A tradução está no título do artigo. Sábia, pela Universidade - fundada em 1088, briga com Coimbra como a mais antiga do mundo -; rubra, pelos telhados vermelhos e pela tradição política de esquerda; e gorda pela fama de ser um dos melhores lugares da Itália para comer. Aliás, já tinha ouvido isso no avião. Viajei ao lado de um italiano que voltava das férias passadas no carnaval do Rio de Janeiro. Quando ele soube que vinha a Bologna (ele é de outra cidade), me falou sobre a qualidade da comida e a amabilidade das pessoas. Tinha razão nas duas coisas.

Antes de encontrar lugar pra morar, fiquei em um hotel próximo ao local das minhas aulas (a Universidade tem diversos prédios e campi espalhados pela cidade. E como explicou meu professor, é uma das grandes responsáveis pela conservação dos edifícios históricos. Tipo assim, construções de 1200 e lá vai bolinha). Passei uns dez dias comendo fora e explorando a culinária típica dos quarteirões universitários: refeições rápidas e relativamente baratas.

Se você não tem muito tempo e/ou muito dinheiro, vai almoçar um panino ou uma piadina. Panino é sanduíche, de maneira geral. Normalmente é recheado com algum tipo de queijo e algum tipo de frio, e às vezes verdura. Já a piadina é tanto o nome da massa quanto o do sanduíche feito com ela. Imagine um pão sírio, só que bem macio. O pão é aquecido e recheado, também com queijo, frios e verdura. Depois é dobrado ao meio, como uma tapioca. Há diversas piadinerias pela cidade e tanto as piadine quanto os panini custam por volta de 4 euros (dá bem uns R$ 10). Mas acredite, valem por uma refeição.

Comi um panino especialmente bom na Cafeteria Maurizio Jazz-Food. É um bar tradicional, que já foi ponto de encontro da boemia e dos intelectuais bolonheses. Umberto Eco dava aulas na sala que tem no andar de cima. Depois da lezione, todos desciam para continuar o papo nas apertadas mesinhas do bar. Com o passar dos anos, Maurizio pendeu um pouco mais para a direita (dizem...), mas continua atendendo os clientes e preparando os panini. Ele recomenda um em especial, que alega ser exclusividade do seu estabelecimento, e que modestamente chama de Buonissimo: formaggio, pancetta, pomodoro e tabasco. Realmente, uma delícia. Com mais um copo de vino rosso da casa e o indefectível cafè, a conta fica por volta dos 8 euros.

Carne, em geral, é cara, mesmo no supermercado. Por outro lado, há uma infinidade de presuntos, salames e embutidos de todos os tipos. São eles que fazem o papel do "bife" nas refeições rápidas. Certo dia, um pouco cansada de comer pão e pizza - adoro, mas e os triglicerídios, já imaginou pra onde vão? -, entrei num café e pedi uma bresaola con formaggio e verdure grillate. A bresaola é um desses embutidos à base de carne de porco, defumado, parecida com um tender. E o queijo era um provolone. O prato estava divino, mas o que me fascinou mesmo foi seu preparo: de trás do balcão, um dos dois moços que serviam os clientes tirou as peças, do embutido e do queijo, e as fatiou finamente. As fatias foram caindo no prato, onduladas e voluptuosas. Depois, completou com as verduras grelhadas: berinjela, abobrinha e pimentão, com aquelas marcas escuras e o cheiro maravilhoso de comida feita na grelha. Para completar, um cestinho de pão.

Nesse dia - era sábado -, pedi uma cerveja para acompanhar. A conta ficou em 9,50 euros. Enquanto a comida não vinha, perguntei se havia internet: "Infelizmente não, mi dispiace". E depois, na hora de pagar a conta, perguntei se aceitavam cartão de débito. Mais um "mi dispiace", sincero e constrangido por não terem duas coisas que eu pedi. Em seguida, a compensação: um desconto de cinquenta centavos na conta (mais de R$ 1). Pode parecer pouco, a menos que você esteja em um lugar onde não se ignora o troco mesmo quando é de apenas um centavo. Também pelo dinheiro, mas não só por ele, esse foi um dos inúmeros exemplos da cordialidade dos bolonheses.

Há que se fazer uma ressalva: quando falo "bolonheses" não são, necessariamente, pessoas que nasceram aqui. Bologna é uma cidade pequena (400 mil habitantes), mas muito cosmopolita. A universidade e a qualidade de vida (que tem seu preço) atraem gente de toda Itália e de diversas partes do mundo. Seja lá de onde vierem, são amáveis, cordiais e bem-humorados.

Teve outro dia em que preferi dar um tempo na farinha de trigo, mas era noite e nevava. Os lugares próximos ao hotel serviam panino ou pizza. E não era o caso de encarar uma trattoria. Foi então que lembrei de um pequeno restaurante chinês - a rosticceria cinese Singapore - no caminho para a Universidade, com a vantagem de poder andar apenas sob os pórticos e me proteger do frio.

Assim como vários outros estabelecimentos da região, este atendia principalmente por delivery (da asporto), mas tinha duas ou três mesas para quem quisesse comer ali mesmo. Naquela noite, éramos apenas eu e os entregadores. Entrei no local, muito, muito simples, e encontrei o restaurante chinês mais limpo que já vi na vida.

A cozinha fica imediatamente atrás do balcão. Pode-se ver o dono preparando os pratos a uma velocidade incrível, em um enorme fogão industrial. Numa mesa de apoio, ao lado, sua mulher prepara os ingredientes, corta os legumes e monta os pratos.

Pedi um frango com funghi e bambu. A chinesa foi para dentro e trouxe um prato com cubos de frango, de aparência muito limpa. Entregou ao marido, que os jogou numa grande frigideira com os outros ingredientes e refogou tudo no óleo de girassol. A refeição foi servida em uma quentinha de alumínio, com talheres de plástico, e mesmo assim foi uma das melhores coisas que comi aqui.

Antes de ir embora, ainda com um pouco de fome, pedi um pão chinês. Levava 20 minutos pra ficar pronto, me avisou a chinesa. Então, optei por um rolinho primavera. Ela acabava de tirar dois rolinhos do fogo, fresquíssimos, e os arrumava num prato para delivery. Acabou servindo-os a mim e, com um sorriso no rosto, foi fritar outros para a entrega.

Já me disseram que toda essa amabilidade seria diferente se eu tivesse biotipo, perfil e estilo de imigrante em busca de trabalho. Mas como sou mulher, já passei dos 20 anos (o maior índice de desemprego aqui é entre os jovens) e venho do pujante Brasil, parece que sou bem-vinda. Será que é só por isso? Ontem estava parada na calçada, com o mapa aberto, tentando encontrar a rua de uma trattoria indicada por este guia bem bacana de Bologna. Uma moça me abordou e ofereceu ajuda. Depois de dar algumas dicas, perguntou se eu era romena. Ou seja, foi amável comigo sem saber que eu era uma privilegiada brasiliana.

Posso estar sendo ingênua, mas ainda acho que os bolonheses são gentis e prestativos além da conta. Ou será que são "normais" e nós é que andamos menos cordiais e menos educados do que gostamos de acreditar?

*Boa parte destas histórias e impressões foi elaborada durante longas conversas com um interlocutor geograficamente distante, mas emocionalmente próximo. E como nenhum discurso é inédito, também credito (e dedico) a ele este texto.

Adriana Baggio
Bologna, 22/3/2013

 

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