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Terça-feira, 30/4/2013
A Poética do Chá
Felipe Leal

Vou começar isto aqui lamentando um fato: o doutor me alarmou: tenho gastrite. Logo eu que admiro os pastéis; que venero um bom churrasco gorduroso; que gosto das batatas fritas com bacon. Logo eu que exalto os hambúrgueres - em todas as suas formas, que cheguei, inclusive, a acompanhar blogs especializados no assunto. Logo eu, enfim, que sempre achei que comer fosse também um prazer estético, não me limitando apenas ao ato de alimentar um corpo, com as vitaminas, proteínas, açúcares e etc. dos quais ele precisa.

Todos os sentidos humanos possuem algo que os aguce - sua arte, por assim dizer: a audição possui a música; nossos olhos têm o privilégio do cinema, da pintura, da fotografia; a escultura é o fazer do tato. Os cheiros são também uma arte à parte: perfumar-se exige certo apuro estético: a escolha da essência para cada momento, para cada personalidade, buscando alguns efeitos no receptor. Por que não teria o paladar também a sua arte?

Assim, acredito que criar um gosto novo é algo tão louvável quanto escrever um poema ou - exagero? - lançar uma vanguarda artística. A mim me encanta muito mais o sabor de uma boa feijoada do que certos romances realistas insossos ou algumas obras dadaístas insípidas - das quais, se comparadas semanticamente, a feijoada ganha inclusive. E nem quero tocar no assunto - óbvio, batido - do prazer visual que uma lasanha, de repente, pode possuir.

Mas nem tudo está perdido para este pobre-diabo que sofre os males de uma dieta rigorosa. É verdade que perdi a poesia drummondiana de um café, mas, em compensação, ganhei a necessidade dos chás: de camomila, branco, de erva-doce, de frutas vermelhas. E é deles que quero falar. Pensemos agora, leitor, no que quero - não lançar - sugerir: a poética do chá.

Hoje cedo - escrevo na segunda-feira - fui comer numa padaria da qual gosto muito, após ir ao médico e antes de comprar alguns livros. Pedi um lanche natural e um chá de hortelã. No saquinho do chá, de um verde claro e leve, eu li uma apresentação poética da erva em questão. Apresentação essa tão pouco objetiva quanto informativa. No lugar da exposição das propriedades do chá ou de sua composição, li um pequeno texto que terminava assim: "Hortelã é suspiro depois do sufoco. É tirar o sapato apertado. É aquele vento que escapa da janela e passa pra lembrar que, sim, a vida é boa".

Para além dos procedimentos (no caso, as metáforas simples e, por isso, poéticas), me chama a atenção a surpresa, o inusitado, da situação. O que seria uma propaganda - estratégia inteligente de marketing? -, acaba por se transformar em algo tão palatável quanto o próprio produto anunciado.

Quando cheguei à minha casa, fui logo ler as embalagens de todos os tipos de chá que aqui tenho, em busca de mais alguns desses achados, e pude comprovar: o cara que escreve essas coisas é, no mínimo, genial. Tomar um chá com o alívio de saber que o ritmo - sim, é isso mesmo: o ritmo! - do chá é "suave, cadenciado, macio. Gostoso como ficar sentado na sombra vendo o dia passar", como um poema do Quintana, soma efeitos ao inerente ao sabor, tornando a experiência estética do paladar algo como sinestésico.

Não tivesse eu sido obrigado a deixar a velha poesia do café - preto, bom, gostoso -, não teria descoberto essa ínfima revolução no âmbito das artes cotidianas - e, banderianamente falando, menores: a poesia do chá.

Me despeço agora, repentinamente: vou preparar meu chá de maçã com canela, porque ele, "quando chega, entra sem pedir licença".

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog Por Trás do Tempo.

Felipe Leal
São Paulo, 30/4/2013

 

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